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Morte



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    “Há somente um deus, a morte; há somente uma prece: 'hoje, não!'†(Game of Thrones)

    “os mortos podem morrer†(K. Gillen, Loki)

    “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer†[6].

    “Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que prolongar a vida do homem era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes.†(Borges, O Aleph)

    “Se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte†(Kafka).

    “Chega um dia, e chega cedo para muitos, em que não é mais tempo de rir, como costumam dizer, porque atrás de tudo o que olhamos avistamos a morteâ€. (Guy de Maupassant, Bel-ami, p. 136).

    “A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último†(Borges, O Aleph).

    “A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas†(Norbert Elias, A solidão dos moribundos).
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O que Joyce chamava ‘o grave e constante no sofrimento humano’ é o tema principal da mitologia clássica, e também da arte e da filosofia. ‘A causa secreta de todo sofrimento (...) é a própria mortalidade, condição primordial da vida. Quando se trata de afirmar a vida, a mortalidade não pode ser negada’ [1]. Ciência, arte, filosofia e religião, são todas expressões pelas quais o homem tenta imortalizar-se, transcender-se a si mesmo. Tudo isso existe porque o homem morre, e não quer morrer, tem fome de imortalidade. O homem não nega a finitude, afronta-a perguntando por quê. Isaac Newton acreditava que a verdadeira filosofia nada mais é que o estudo da morte, e Barnes acrescenta: “a verdadeira arte também, principalmente quando sai em defesa da vidaâ€.

“Ser imortal é insignificante; com exceção do homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte†(Borges, O Aleph).
É de se lembrar, a propósito, que, para fins existenciais, “o que chamamos de morte é em primeiro lugar a consciência que temos dela†[5]. E, como adverte a frase de Borges, o homem é o único animal que tem consciência da sua condição de “ser para a morte†[2], pois os demais animais não sabem que são finitos. A consciência da inevitabilidade de não-ser é (juntamente com a liberdade) uma das causas da Angústia de que tratava Kierkegaard. Por outro lado a maior parte das pessoas, todavia, esforça-se para esquecer o assunto através daquilo que Pascal chamava Diversão, pensando, como Barnes, que “nossa única defesa contra a morte - ou melhor, contra o perigo de não conseguir pensar em outra coisa - está na aquisição de preocupações de curto prazo que valham a pena†[3]. Fugindo da consciência desse aspecto inseparável da sua natureza, as pessoas caem no que Heidegger chamava “existência inautênticaâ€.

O problema da morte está vinculado ao problema da existência no Tempo e sua irreversibilidade. Trigo lembra que o homem é mais que mortal: é impotente na grande extensão da sua existência, limitado, finito. Ser finito é projetar-se em apenas uma possibilidade de ser, excluindo todas as outras possíveis (fazer uma escolha é renunciar a todas as outras, sem possibilidade de reversão)†[4]. Por outro lado, como Borges demonstra poeticamente num dos seus contos, é justamente a mortalidade que atribui peso e significado à existência humana: fosse ela infinita, os atos e obras do homem, e tudo que o alegra ou preocupa, espalhados como grãos de pó numa sucessão infinita, não teriam qualquer relevância.

A definição do que seja morte, por outro lado, é intrincada, porque se sabe que o termo indica o fim ou cessação da vida, mas esta, por seu turno, é de difícil e polêmica definição. O tema tem a ver com a Filosofia da mente, área das menos desenvolvidas do conhecimento humano, e depende da elucidação de um dos dilemas básicos da filosofia, a questão mente-cérebro: para uma corrente, monista ou materialista, amplamente majoritária atualmente, a mente (ou consciência, ou alma, ou espírito, conforme o autor) é um fenômeno físico-químico, material-natural, produto do cérebro. Daí que, para essa teoria, vida e morte são também fenômenos físico-químicos, e definir quem está vivo ou morto é tema da biologia somente. Basta adotar uma das opções que a biologia oferece para determinar quando cessam as funções (ou processos) vitais: a) com a cessação da função cárdio-pulmonar, ou b) com a cessação total da atividade cerebral (tese majoritária), ou c) com a cessação das funções cerebrais superiores, que seriam as relacionadas com a capacidade de consciência, o que levaria a considerar clinicamente morto quem está em coma irreversível, ainda que respire sem ajuda de aparelhos. Esta terceira tese é mais recente e minoritária [7].

Para a corrente oposta no campo da filosofia da mente, chamada dualista [8], corpo e mente (ou alma, ou espírito, ou consciência, conforme o autor) são substâncias distintas. Esta última não integra o mundo material, pertence ao mundo das ideias, é da mesma natureza e tem as mesmas propriedades das ideias. Seria, portanto, imaterial e imperecível, em outras palavras, imortal.


Notas:

[1] CPM, p.vii.

[2] Expressão de Heidegger.

[3] Julian Barnes, Nada a temer.

[4] T2013p.

[5] Bataille, aqui.

[6] Sileno, em resposta à pergunta de Midas sobre o que seria melhor para o homem; N., O nascimento da tragédia, p.33.

[7] Para uma detalhada explicação de cada uma dessas visões: DeGrazia, David. “The Definition of Deathâ€. In: Edward N. Zalta (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2017 Edition), disponível aqui, acesso em 21 jun. 2017.

[8] Platão e Descartes são expoentes dessa corrente.