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Gustave Flaubert inventou o romance moderno. Órfão, epilético, reprovado no vestibular para Direito, amante de mulheres mais velhas e casadas, boêmio convertido em ermitão, dedicou-se exclusivamente à escrita desde os 29 anos. Queria fazer “um livro sobre nada, um livro sem ligações exteriores, que se mantivesse pela força interna do seu estilo, um livro em que o sujeito ficasse quase invisível”. Dele Sartre disse ser “uma espécie de semideus, que viveu como um burguês e escreveu como um artesão”. “Madame Bovary” (“monumento de palavras” segundo Llosa) lhe custou cinco anos de trabalho. Censurado e processado por causa do livro, que chocou a sociedade da época, Flaubert disse: "Emma Bovary sou eu".







LITERATURA | RESENHA

Madame Bovary

Ninguém fica indiferente a Emma Bovary: você pode amá-la ou odiá-la; poderá alguém compreendê-la?




22 maio 2008 | comente





Vindo ao mundo no meio do Séc. XIX, Emma Bovary entrou para a lista das adúlteras literárias célebres numa época pouco amistosa. Não cabe fazer aqui uma comparação a fundo entre ela e suas congêneres na literatura do período 2, mas noto, por alto, que Tolstói talvez tenha dado à sua Anna um pouco menos de felicidade, ou um período mais curto de felicidade, mas lhe deu também uma morte mais rápida e misericordiosa, menos supliciante. A Luísa de Eça não conheceu o amor de verdade, porque o seu Basílio era como o Rodolfo de Emma, um sedutor sem escrúpulos nem afeto; mas sua morte foi, de certa forma, mais redentora, se é que pode haver morte boa: morrer doente de arrependimento sempre gera um pouco mais de simpatia numa parte do público. Duas décadas depois da morte de Luísa a Capitu de Machado de Assis não precisou matar-se nem morrer de arrependimento, sofreu só um exílio honroso; é bem verdade que tinha atenuantes em seu favor: não temos a prova segura da sua culpa, e o adultério, se houve, se passou no Brasil, entre gente menos esquentada. Mas foram necessários setenta anos desde Bovary para que uma adúltera literária célebre, Lady Chatterley, pudesse ter ao menos a possibilidade de um final feliz ao lado do amante.

Não acho, contudo, que “Madame Bovary” seja um livro sobre adultério, e só: o que está em discussão é algo maior, mais ambicioso e substancial. Emma Bovary mantém-se no cânone dos grandes personagens literários há 160 anos, e uma obra não se imortaliza se não trata alguma questão universal, que o leitor de todas as épocas e lugares possa identificar como um problema que lhe diz respeito. Logo, a longevidade do livro prova que é injusto simplificar a jornada de Emma numa espécie de caça ao homem ideal. Ela buscava algo maior, mais difícil, mais raro. Ela sonhava com uma vida diferente, rica em sensações e vibração, colorida e emocionante, cheia de significado, risco e gozo. Achar um homem que pudesse tirá-la do horizonte confinado em que vivia era um meio, não um fim. Um meio indispensável para uma mulher burguesa sem dinheiro em 1857.

Penso, também, que a princípio a própria Emma imaginou que suas questões se resolveriam quando encontrasse o homem “certo”, com quem viveria o amor verdadeiro. Foi seu primeiro projeto de vida, mas os últimos capítulos sugerem que ela o abandonou. O livro é, talvez, a história da educação sentimental da protagonista. É uma busca existencial, a busca de um sentido para a vida. Emma testa várias hipóteses. A julgar pelo desfecho, a conclusão a que chegou foi desoladora.

Sumário


os modelos de Emma

“Feliz ou infelizmente (dependendo do significado que se der à palavra) todos nós exageramos ao viver o papel de nosso personagem favorito” 3. Emma desenhou para si um papel a representar na vida, e o fez a partir de modelos literários. “Emma lera Paulo e Virgínia” 4 e muitas outras obras românticas, no mau sentido da palavra:

“devorava capítulos inteiros nas horas vagas. Era só amores, amantes, damas perseguidas que desmaiavam em pavilhões solitários, postilhões assassinados nas estações de muda, cavalos rebentados em todas as páginas, florestas sombrias, perturbações do coração, juramentos, soluços, lágrimas e beijos, barquinhos ao luar, rouxinóis no arvoredo, cavaleiros bravos como leões e mansos como cordeiros, virtuosos como já não há, sempre bem postos e chorando como chafarizes” 5

A partir desses modelos projetou uma personagem para representar:

“Quisera viver nalgum velho solar, como aquelas castelãs de corpetes compridos que, sob os ornatos das ogivas, passavam os dias com o cotovelo apoiado ao peitoril e o queixo na mão, à espera de ver surgir do extremo horizonte algum cavaleiro de pluma branca, galopando num cavalo preto.” 6

Das suas leituras construiu “verdadeiro culto por Maria Stuart 7 e veneração entusiástica pelas mulheres ilustres ou infelizes”, como Joana d’Arc, Heloísa 8, Inês Sorel 9, a bela Ferronnière 10, todas com vidas grandiosas e trágicas, geralmente envolvidas em amores aventurosos e infelizes. Isso porque Emma

acostumada aos aspectos serenos, voltava-se, pelo contrário, para os acidentados. Não gostava do mar senão pelas suas tempestades e da relva unicamente quando era alternada com ruínas. Sentia necessidade de poder tirar das coisas uma espécie de proveito próprio, e repelir como inútil tudo que não contribuísse para a alegria imediata do coração, porque tinha um temperamento mais sentimental que artístico, procurando emoções e não paisagens.

Quis moldar a si e à sua vida pela fórmula que mais tarde descreveu a um dos amantes:

adoro as histórias que caminham de um jato e que dão medo. Detesto os heróis comuns e os sentimentos temperados como se encontraram na natureza.

Queria, assim, uma vida incomum, grandiosa, ainda que curta e trágica, com final infeliz, como as de suas heroínas-modelo. Talvez por isso, de certa maneira, sentiu-se enriquecida, promovida, pela morte da mãe:

ficou intimamente satisfeita de se sentir chegada ao raro ideal das existências pálidas, nunca atingido pelos corações medíocres.

Com efeito, a morte precoce da mãe roceira, doméstica e comum livrou-a do modelo materno tradicional, e deixou-a livre para cultuar como figuras maternas e paradigmas aquelas heroínas trágico-românticas. E mais tarde, ao finalmente conquistar um amante, ela

Lembrou-se das heroínas dos livros que havia lido e a legião lírica dessas mulheres adúlteras punha-se a cantar em sua lembrança, com vozes de irmãs que a encantavam.


Tostes

Saída do convento, Emma viu em Charles a oportunidade de escapar da vida rural pacata. Supunha, talvez, que o amor ardente que conheceu nos livros viria necessariamente, como uma função automática. Quem quer que tenha lido até o final admitirá que Charles amava sua Emma tanto quanto é possível esperar na vida real. Mas isso não satisfazia:

a ansiedade de um novo estado, ou talvez a excitação causada pela presença daquele homem, tinham-lhe sido o bastante para convencer-se tocada, enfim, por aquela paixão maravilhosa que até então estivera pairando como uma grande ave de plumagens rosadas, nos esplendores dos céus poéticos; e não podia convencer-se agora de que aquela tranquilidade em que vivia fosse a felicidade com que havia sonhado. (…) Antes de se casar, julgara sentir amor; mas, como a ventura resultante desse amor não aparecia, com certeza se enganara, pensava ela. E procurava saber qual era, afinal, o significado certo, nesta vida, das palavras “felicidade”, “paixão” e “embriaguez”, que nos livros pareciam tão belas.

Bem que ela tentou construir artificialmente uma paixão à moda livresca:

segundo teorias que ela tinha por boas, quis entregar-se ao amor. Ao luar, no jardim, recitava em rimas apaixonadas tudo que sabia de cor e cantava-lhe suspirando adágios melancólicos; mas, depois, sentia-se tão tranquila como dantes e Charles já não lhe parecia mais amoroso nem agitado.

É que, conforme ela aprendera nos livros, o amor vem

com ruídos e fulgurações, tempestade dos céus que cai sobre a vida e a revolve, arranca as vontades como folhas e arrebata para o abismo o coração inteiro.

Por aí se resume o ideal de Emma, sua visão do mundo: o fruto se conhece pela árvore, e o fruto da árvore do amor é a felicidade. Se não resultou felicidade, não há amor. Felicidade não combina com tranquilidade, tem que parecer com uma embriaguez. O amor é agitado, ruidoso, violento; tranquilo é o contrário de amoroso. E, por fim, para apaixonar-se basta agir como se apaixonado estivesse: a paixão nasce do esforço e da convicção. Essa é a rotina que Emma repetirá até morrer. Mas, com Charles, não funcionou, o sentimento não veio.

Emma percebeu-se afinal “incapaz afinal de compreender o que não sentia”, e achou natural concluir que o defeito estava no marido, que não era “belo, inteligente, distinto, atraente, tal como eram, sem dúvida, os que se tinham casado com as suas companheiras de convento”. A decepção não a levou a descrer das suas fantasias juvenis. Ao contrário, tinha certeza de que sua angústia era devida a uma condição de vida inadequada mas transitória:

Tudo o que a rodeava de perto, os campos enfadonhos, os burguesinhos imbecis, a mediocridade da existência, parecia-lhe uma exceção no mundo, um caso particular em que se achava envolvida, ao passo que para além se estendia, a perder de vista, o imenso país da felicidade e das paixões.

Então Emma passa por um episódio epifânico e ali tem um vislumbre de algo que se parecia com o mundo que conhecera nos romances. Daí foi um passo até concluir que, como o defeito estava no marido e no lugar, era necessário trocar, de lugar e homem, para chegar a esse “país da felicidade e das paixões”.

o baile

Para o baile no palácio do marquês de Vaubyessard “Emma fez sua toalete com a meticulosa consciência de uma atriz na noite da estreia”, fiel a seu costume de representar o papel que escreveu para si mesma. E, com efeito, o baile é um divisor de águas na jornada de Emma 11. Ali ela passa por uma epifania, tem uma visão do paraíso, ao menos daquilo que para ela seria o Éden: um mundo encantado de gente bonita, bem vestida, perfumada, rica e despreocupada, vivendo intensamente e envolvendo-se em intrigas amorosas e aventuras. Ali “o açúcar pareceu-lhe mais branco e mais fino do que em outros lugares”.

Alguns homens (uns quinze), de 25 a quarenta anos, espalhados por entre os pares, ou conversando na entrada das portas, distinguiam-se dos restantes por certo aspecto grave, apesar das diferenças da idade ou do traje. As suas casacas, mais bem feitas, pareciam de melhor tecido, e os cabelos, puxados em caracóis para a fronte, lustrados com pomadas mais finas. Tinham o aspecto da riqueza, brancos, realçados pela palidez das porcelanas, as ondulações do cetim, o polimento dos belos móveis, e conservados por um regime discreto de alimentos esquisitos. … Os que começavam a envelhecer pareciam jovens, ao passo que na fisionomia dos mais novos notava-se alguma coisa de maduro. No olhar indiferente flutuava a quietude de paixões diariamente saciadas; e, através das maneiras discretas, transparecia a brutalidade peculiar ao domínio de coisas fáceis, nas quais a força se exercita e a vaidade se satisfaz; governar cavalos de raça e conviver com mulheres perdidas.

Diante de si Emma via os personagens dos livros da sua adolescência. O mundo dos sonhos, o país da felicidade, existia, então, de fato. E essa festa no céu aristocrático, no Olimpo, tem inclusive a presidir os ritos a imagem do que seria, na visão de Emma, um Zeus, materializado no velho duque:

À cabeceira da mesa, sozinho entre todas aquelas damas, curvado sobre o prato cheio, o guardanapo no pescoço, como qualquer criança, estava um ancião comendo e deixando cair da boca pingos de molho. Tinha os olhos inflamados e um rabichinho com um laço de fita preta. Era o sogro do marquês, o velho Duque de Laverdière, outrora favorito do Conde de Artois no tempo das caçadas em Vandreuil, nas propriedades do Marquês de Conflans, que fora, segundo se dizia, amante da Rainha Maria Antonieta, entre os senhores de Coigny e de Lauzun. Levara uma vida desregrada, cheia de duelos, de apostas e raptos de mulheres, gastara toda a fortuna e assustara toda a família. Um criado, imóvel atrás da sua cadeira, dizia-lhe em voz alta, ao ouvido, os pratos para os quais ele apontava balbuciando; os olhos de Emma voltavam-se sem cessar, involuntariamente, para aquele velho de lábios pendentes, como para alguma coisa extraordinária e majestosa. Vivera na corte e deitara-se em leito de rainhas!

Era uma ruína de homem devasso, falido e debilitado à custa de excessos, um velho que baba e precisa de ajuda para comer, mas para Emma é a imagem de um deus vivo, o seu ideal de homem: viveu aventuras, duelos, raptou mulheres, viveu na corte e foi amante de rainhas! Era o herói dos livros, vivo, diante dela.

Um criado, subindo a uma cadeira, quebrou duas vidraças; ao ruído dos vidros quebrados, a Sra. Bovary voltou a cabeça e viu no jardim, encostadas às janelas, caras de camponeses espiando. Vieram-lhe então à lembrança os Bertaux.

Nesse contraste entre o mundo dentro do jardim encantado e o mundo horroroso das pessoas comuns, Emma toma partido e decide onde quer estar e quem deseja ser. Nem a nostalgia do pai e da infância se sobrepõem:

ante a fulguração daquele momento, a sua vida passada, tão clara até então, desvanecia-se-lhe inteiramente a ponto de chegar a duvidar de que realmente a tivesse vivido. Achava-se ali; e além do baile não havia senão sombra, estendida por sobre o resto.

Emma passa a crer que o mundo fantástico dos livros românticos existe de verdade. Pelo menos os personagens e cenários ela viu. É lá que ela quer viver. Transfigurada, inflada por essa experiência mística, dos mistérios da riqueza e da nobreza, não conseguirá mais caber no horizonte confinado da sua vida burguesa. No dia seguinte já perceberá:

Como o baile lhe parecia distante! O que é que separava tanto a manhã de anteontem da noite de hoje? … A sua viagem a Vaubyessard abrira-lhe uma brecha na vida, à maneira das grandes fendas que uma tempestade, numa só noite, rasga às vezes nas montanhas.

Depois desse dia, vive completamente numa fantasia nostálgica. Abraça

os sapatos de cetim, cuja sola se amarelara na cera escorregadia do assoalho. O seu coração era como eles: o roçar da riqueza deixara-lhe vestígios que nunca mais se apagariam.


o lugar da felicidade

Emma supôs, então, que seu problema fosse de natureza geográfica:

parecia-lhe que certos lugares da terra deviam dar a felicidade, como planta peculiar ao solo que não se dá bem noutra parte.

porque

acaso não necessita o amor, como certas plantas, terreno preparado, temperatura especial? Os suspiros ao luar, os abraços prolongados, as lágrimas que correm pelas mãos que se abandonam, todas as fibras da carne e as lágrimas da ternura não se podiam separar, pois, do balcão dos grandes castelos cheios de ociosidade, dos toucadores de cortinas de seda e tapetes muito espessos,

Logo, a felicidade devia estar em

vós, paisagens lívidas das regiões ditirâmbicas, que muitas vezes nos mostrais, ao mesmo tempo, palmeiras, pinheiros, tigres à direita, um leão à esquerda, minaretes tártaros no horizonte, ruínas romanas no primeiro plano e em seguida um grupo de camelos acocorados; tudo emoldurado por uma floresta virgem

E porque não conseguia evadir-se da cidadezinha acanhada 12 rumo ao país da felicidade, Emma adoeceu, e, na sua doença, “ambicionava, ao mesmo tempo, morrer e residir em Paris”, que passou a identificar como sendo o endereço da paixão.

Refugiou-se, então, na fantasia. Passou a fingir o estilo de vida que, na sua concepção, produzia a felicidade. Passou a vestir-se e comportar-se como as heroínas dos romances, talvez crendo que, imitando os gestos e rituais delas, teria uma vida como a delas:

arranjou para o serviço uma rapariguinha de catorze anos, órfã, e de fisionomia meiga. Proibiu-lhe o uso de toucas de algodão, ensinou-lhe o emprego do tratamento na terceira pessoa,

E depois

usava um robe de chambre aberto de alto a baixo, que deixava ver, por entre as aberturas do corpete, uma camisola plissada, com três botões dourados. O cinto era um cordão de grandes borlas, e as chinelinhas grená tinham laços de fita larga no peito do pé. Comprara um bloco de papel, uma caneta e envelopes, apesar de não ter ninguém a quem escrever;

E em sua mente e coração mudou-se imaginariamente para a cidade dos sonhos:

Comprou um mapa de Paris e, com o dedo, percorria a capital. Subia os bulevares, parava em todas as esquinas,

E lá ela achava que existia um mundo onde os dias eram permanentemente similares àquilo que vislumbrou no baile:

Paris, mais vasta que o oceano, resplandecia, pois, aos olhos de Emma, numa atmosfera vermelha. A onda enorme que se agitava naquele tumulto dividia-se contudo em partes, classificadas em quadros distintos. Emma não via senão dois ou três que lhe ocultavam os demais, e representavam, só por si, toda a humanidade. O mundo dos embaixadores caminhava por assoalhos luzidios, em salões forrados de espelhos, ao redor de mesas cobertas de tapetes de veludo com franjas de ouro. Havia ali vestidos de cauda, grandes mistérios, angústias disfarçadas em sorrisos. Seguia-se a sociedade das duquesas; eram todas pálidas; levantavam-se às 4 horas da tarde; as mulheres, pobres anjos! usavam rendas da Inglaterra na fímbria das saias, e os homens, capacidades ignoradas sob fúteis exteriores, rebentavam cavalos por divertimento, iam veranear em Bade e, quando chegavam aos quarenta anos, casavam-se com herdeiras ricas. Nos reservados dos restaurantes, onde há ceia depois da meia-noite, a multidão alegre dos literatos e dos artistas ria à claridade das velas. Aqueles mostravam-se pródigos como reis, cheios de ambições, de ideias e de delírios fantásticos. Era uma existência superior às outras, entre o céu e a terra, nas tempestades, alguma coisa de sublime. Quanto ao resto do mundo, desaparecia, sem lugar determinado como se não existisse.

Então passou a agir como se já vivesse lá:

Assinou a Corbeille, jornal de senhoras, e o Silfo dos Salões. Devorava, sem perder uma palavra, todas as notícias das primeiras representações, das corridas e das sessões de gala, interessando-se pela estreia de uma cantora e pela abertura de uma casa de modas. Estava a par do último figurino, sabia o endereço dos melhores costureiros e quais os dias de passeio ou de ópera. Estudou, em Eugênio Sue, descrições de mobiliário; leu Balzac e George Sand, procurando satisfações imaginárias para os seus apetites pessoais.


rumo a Yonville

A satisfação imaginária e o auto-engano não contentaram Emma, que, cada vez mais doente, acaba convencendo Charles a se mudar. Não para Paris, infelizmente, mas pelo menos para uma cidade menos acanhada. Flaubert prenuncia numa imagem forte o que a mudança representa:

Um dia em que, prevendo a partida, arrumava uma gaveta, Emma picou-se nos dedos. Era um arame da sua grinalda de noiva. As flores de laranjeira estavam amarelas de pó e as fitas de cetim, de orlas prateadas, desfaziam-se. Pegou na grinalda e jogou-a ao fogo

A imagem mostra que para Emma não se trata apenas de escapar do confinamento sufocante da aldeia: o que a machuca, e o que ela quer destruir, é seu vínculo com Charles e o que ele representa.

Com a chegada de Emma a Yonville, Flaubert marca a mudança de fase, metaforizada pela mudança de leito:

Era a quarta vez que ela dormia num lugar desconhecido. A primeira fora no dia da sua entrada para o convento; a segunda no dia da sua chegada a Tostes, a terceira em Vaubyessard, a quarta era ali; e em todas elas sentira como que o começo de uma fase nova na sua vida.

A cidade de Yonville não existe de verdade. Yon significa “acolá” em francês, Yonville é algo como “aquela vila acolá”, uma indicação de que quer ser um símbolo universalizante, uma vila para representar todas as outras 13. Flaubert cria um microcosmo imaginário para representar a sociedade da sua época. O livro é simultaneamente um retrato de mulher e uma crítica de costumes.

É recurso tradicional nas narrativas de ficção fazer do cenário, do espaço narrativo, um personagem. Quando o conflito se dá entre valores do protagonista e os da sociedade, esta, personificada pela cidade, é o antagonista. É o que ocorre aqui. Yonville representa a sociedade francesa, burguesa e provinciana, do Séc. XIX, com cujos valores, costumes e convenções o projeto de vida de Emma conflita.

E Flaubert desenha a cidade-personagem dando-lhe, em poucas imagens, uma cara e um caráter fáceis de entender. É uma “região bastarda, onde a linguagem não tem acentuação, assim como a paisagem é sem característica”: a fala sem sotaque de lugar nenhum, e a paisagem neutra, são um recurso estilístico para enfatizar a universalidade, pois a cidade pode ser qualquer uma e, portanto, é todas ao mesmo tempo.

Além da igreja, da estalagem, da farmácia e de duas ou três casas,

“nada mais há para ver-se em Yonville. A rua (a única), da distância de um tiro de espingarda, termina bruscamente no cotovelo da estrada. … em breve se chega ao cemitério. … O pequeno cemitério …, fechado por um muro baixo, está tão cheio de túmulos que as velhas lousas formam uma laje contínua”.

Ou seja, é fácil morrer ali (em breve se chega ao cemitério, onde é fácil entrar porque o muro é baixo) e há tantos mortos que o lugar é praticamente uma cidade fantasma, uma terra de mortos, onde os mortos são a maioria, e os que restam são mortos-vivos, segundo os padrões de Emma: gente sem ambição nem personalidade, levando vidas sem cor nem vibração. É uma cidade pequena, de vida pequena e morte abundante, como se vê. Até a explicação do tamanho da única rua evoca um tiro de espingarda, ou seja, a violência, a morte, as imagens funestas. A rua e a cidade “terminam no cotovelo”, isto é, é uma cidade maneta, aleijada, amputada, onde falta algo.

Aliás o nome inteiro da cidade é Yonville-l’Abbaye, abadia de Yonville, e se chama assim “em virtude de uma antiga abadia de capuchinhos, da qual nem as ruínas existem mais”. Até o nome (que define o simbolismo de um personagem) evoca a vinculação a um passado que não existe mais: a sociedade em questão se identifica (em duplo sentido) com uma ideia da qual nem as ruínas sobraram. Flaubert critica, assim, os valores da comunidade, que são ultrapassados e obsoletos, superados 14.

O centro da povoação é a velha igreja, ou seja, os valores burgueses, cristãos, antigos, são o centro da comunidade e da vida daquelas pessoas. A igreja, em si, é um mini-retrato daquele povo. Os bancos têm dono e marca de propriedade: não é um lugar onde um forasteiro possa se instalar facilmente. “Por cima da porta, onde devia estar o coro, há uma tribuna para homens”, ou seja, homens e mulheres devem ficar separados, porque a mistura entre eles é pecaminosa, e não é bem vista ali. A mulher, que é a porta do inferno, fica separada do homem, para não tentá-lo. E o homem, que é superior, fica no andar mais alto, sendo quase uma outra divindade. E, para reforçar a imagem, nessa igreja até a “estatueta da Virgem” tem “as faces tão avermelhadas como um ídolo das ilhas Sandwich”: uma santa maquiada como uma meretriz, indicando que na visão daquela comunidade mulher nenhuma é de confiança. Por isso elas ficam segregadas e rebaixadas 15.

A falta de confiança e confiabilidade é anunciada também “sobre o portão da estalagem”, onde “o velho leão de ouro, desbotado pelas chuvas, continua a mostrar aos transeuntes o seu pêlo de cão-d’água” 16: é uma cidade onde as coisas fingem ser melhores do que realmente são.

É uma terra apolínea 17, apegada à tradição, aos valores do trabalho, à rotina e à mansidão. A grande festa cívico-agrícola mostra bem isso. Ali vemos a comunidade representada pelos membros do júri, e “todos eles se pareciam”. E o prêmio mais destacado vai para uma mulher alquebrada pelos 54 anos de serviço na mesma granja, que anuncia que dará o prêmio que ganhou “ao cura, para que me diga missas”. Essa velha, bestializada por uma vida de semi-escravidão, premiada juntamente com bois e carneiros, por méritos parecidos com os deles (produtividade, lucro para o patrão), é imagem do destino que aquela sociedade prescreve para seus habitantes.

os coadjuvantes

Os coadjuvantes mais destacados também representam facetas dessa comunidade e sua visão de mundo. Binet, por exemplo, está perfeitamente adaptado ali, é cidadão de destaque, e está em cena para fazer um contraponto com Homais. Binet é o burguês honesto sem ambições, contente na sua mediocridade. Sua ocupação habitual é tornear, perpetuamente, peças em madeira, complexas mas sem qualquer função ou utilidade:

Este estava só, na sua água-furtada, executando em madeira uma dessas obras indescritíveis de marfim, compostas de crescentes, de esferas ocas e metidas umas nas outras, tudo direito como um obelisco e sem servir para nada;

E nessa ocupação inútil ele

parecia enfim perdido numa dessas felicidades completas que são, sem dúvida, atributos apenas das ocupações medíocres, que divertem a inteligência com dificuldades fáceis, saciando-a com uma realização além da qual nada há que sonhar.

Esse é um cidadão-modelo do microcosmo de Flaubert. Pode-se dizer que Binet é o que Charles seria, se não se conhecesse Emma: bom sujeito, bom cidadão, de vida normal e modesta, sem emoções, realizando uma obra “direita”, mas “sem servir para nada”, em “ocupações medíocres” que “divertem a inteligência” 18, vivendo saciado sem sonhar. Esse é, por assim dizer, um Charles que deu certo, um Charles sem desmedida 19.

Fazendo o contraponto com Charles e Binet, há os ambiciosos, os líderes da comunidade, ricos ou a caminho de enriquecer, mas tacanhos como o prefeito Tuvache (que “temia uma bronquite na esposa, por causa do costume que tinha de cuspir na cinza”), daninhos e aproveitadores como Guillaumin, ou mais complexos como o farmacêutico Homais, um personagem desenhado mais cuidadosamente, porque nele Flaubert quis representar como funcionava a ascensão social no seu mundo e no seu tempo: com falsidade e egoísmo implacável.

Homais, arrogante e meio bobo, representa o francês politizado e anticlerical, radical em suas concepções a ponto da cegueira, com uma noção superestimada do próprio valor, e uma tendência a querer ser professor do mundo. Eis uma seleta dos seus melhores pensamentos:

já não se joga como antigamente; está tudo mudado! E não há remédio senão marcharmos com o século. … Eu queria que se inscrevessem, semanalmente, à porta da Prefeitura, num quadro ad hoc, os nomes de todos os que. durante a semana, se intoxicassem com bebidas alcoólicas. Além disso, relativamente à estatística, teríamos ali como fontes informativas seguras, no caso de necessidade… se fosse o governo, havia de fazer com que os padres fossem sangrados uma vez por mês.

E por aí segue: tem opinião sobre tudo. Embora seja ignorante, egoísta e mesquinho, afirma que “meu Deus é o Deus de Sócrates, de Franklin, de Voltaire e de Béranger!”. Confrontado com o cego escrofuloso que pede esmolas, o farmacêutico lhe dá de graça a receita da cura:

Há muito tempo que tens essa horrível doença? Em vez de te embebedares nas tabernas, era muito melhor que te tratasses. E aconselhou-o a beber bom vinho, boa cerveja e comer bons assados.

Mente sempre que lhe convém, e convenceu todos de que Emma tomou arsênico pensando que era açúcar, enquanto fazia creme de baunilha. Parece uma mentira caridosa, a benefício da memória de Emma, mas só visava livrar Homais da suspeita de ter facilitado o suicídio descuidando a guarda do veneno. E, quando Charles empobrece, Homais deixa de frequentar-lhe a casa, como fazia todos os dias nos bons tempos, e impede os filhos de manterem amizade com a pobre Berta, “visto a diferença das suas condições sociais”. Quando não consegue curar o cego, persegue-o implacavelmente pelo jornal, inventando calúnias inclusive, até conseguir sua internação perpétua. Foi dele a ideia para o ambíguo epitáfio de Emma, “amabilen conjugem calcas”, que significa “pisas numa esposa amável”; o verbo pisar aí tem duplo sentido, pode tanto significar caminhar sobre como maltratar com violência. Ao final da fábula, veremos que o resultado da jornada hipócrita, inescrupulosa e ambiciosa de Homais foi o mais exitoso possível: tornou-se “o mais feliz dos pais, o mais afortunado dos homens” e recebeu a Legião de Honra à custa de muito mentir, subornar e fingir.

E foi aí, numa tal comunidade e cercada por tais pessoas, que Emma reiniciou sua busca:

Como os marinheiros em perigo, relanceava olhos desesperados pela solidão da sua vida, procurando, ao longe, alguma vela nas brumas do horizonte.


as paixões

E quando Emma “suspira pelo amor como uma carpa pela água sobre uma mesa de cozinha”, a esperança surge na forma de uma paixão frustrada por Leon. Em seguida, ela enfim conquista um amante, ou é conquistada por ele. Em Rodolfo encontra a materialização aparente do seu homem ideal, até porque vê nele a imagem do que ela considera ser a felicidade:

“O senhor não tem de que se queixar. … Porque, enfim… O senhor é livre”. Hesitou: “E rico”.

Era, que não era livre nem rica, atira-se toda no incêndio da paixão, e pensa ter chegado à meta, a ponto de ter “essa inexprimível beleza que resulta da alegria, do entusiasmo, do êxito, que nada mais é que a harmonia do temperamento com as circunstâncias”. Emma crê ter achado o caminho da felicidade. Vê em Rodolfo o seu redentor, e lhe pede, literal e pateticamente, que a salve. Salvação, para ela, seria sair de Yonville e do casamento para viver, numa indeterminada terra prometida, um amor que “deveria ser confessado até perante o céu”, um amor capaz de enfrentar “deserto, precipício ou oceano” e onde um seria para o outro a família e a pátria:

no esplendor desse porvir com que ela sonhava, nada de particular adviria: os dias, todos eles magníficos, seriam iguais como ondas.

Mas, “no fim de seis meses, quando a primavera chegou, achavam-se reciprocamente como dois casados que alimentam tranquilamente uma chama doméstica”. O tédio a atinge, de novo. E Emma principia a questionar a validade dos seus objetivos, e pela primeira vez indaga se o amor seria realmente a fonte da felicidade:

Mas quem a fizera tão infeliz? Onde estava a catástrofe extraordinária que a esmagara? E ela ergueu a cabeça, olhando à sua volta, como a buscar a causa do que a fazia sofrer. … Perguntava mesmo de si para consigo a razão por que detestava Charles, e se não fora melhor poder amá-lo. … Ela desejava apenas se apoiar em algo mais seguro que o amor.

Traída miseravelmente, e abandonada pelo amante, Emma pensa em matar-se, e depois cai em apatia mórbida. Quando está prestes a iniciar sua segunda aventura amorosa, ela já está mais madura e cética. Diante dos amores de Lucia de Lammermoor 20, Emma já não se impressiona:

essa ventura, porém, era uma mentira, imaginada para desespero de todo desejo. Conhecia já a pequenez das paixões, exageradas pela arte … chegava mesmo a sorrir intimamente, condoída,

de tal forma que nem se interessou pelo grande momento da peça, a “cena da loucura”; preferiu sair, alegando que “a cantora parecia-lhe exagerada”, porque “grita demais”. Faz uma espécie de ato inconsciente de contrição, percebendo, talvez subliminarmente, que sua loucura amorosa também era exagerada, e que ela também fazia muito barulho por nada. Só que, ironicamente (uma das várias belas ironias de Flaubert), quando Emma chega a esse ponto de virada, essa espécie de epifania da qual a ópera é o rito iniciático, aparece Leon, e toda a racionalização de Emma cai por terra: ela esquece as conclusões estóicas a que chegara pouco antes, esquece o quanto lhe pareceram ridículos os amores de Lucia, e se apressa em arranjar meios e pretextos para tomar esse novo amante, incidindo de novo e sem vacilar na loucura dionisíaca e amorosa.

Inicia, então, um romance ainda mais atrevido, com uma entrega ainda mais intensa e despudorada. Pensa, de novo, ter chegado ao país da felicidade, mas, passados alguns meses, a paixão se esvai, o incêndio vira em cinzas mornas. E, dessa vez, Emma, amadurecida pela experiência anterior, pelo menos percebe que não é só no amante que o fogo apagou, constata que também ela não sentia mais a paixão de antes:

Ela se prometia continuamente, na próxima viagem, uma felicidade profunda; depois se confessava não sentir nada de extraordinário. … E contudo eu o amo! — dizia ela consigo. Apesar disso, não era feliz, nunca o fora. De onde vinha, pois, aquela insuficiência da vida, aquele apodrecimento instantâneo das coisas em que se apoiava?… Ela sentia-se tão desgostosa dele, como fatigado dela ele estava. Emma reencontrava no adultério toda a insipidez do lar conjugal. … Que impossibilidade! Nada, afinal, valia a pena procurar-se; tudo mentia! Cada sorriso ocultava um bocejo de enfado, cada alegria uma maldição, todo prazer o seu desgosto, e os melhores de todos os beijos não deixavam nos lábios senão uma irrealizável ânsia de voluptuosidades mais intensas.

Vendo-se sem saída, ela reluta em renunciar às ilusões, e o que antes fora paixão torna-se um apego doentio: “cada dia se lhe agarrava mais, exaurindo toda a felicidade à força de a querer muito grande”. Voltou a tentar enganar-se, mas sem sucesso: as cartas apaixonadas que escrevia não eram dirigidas ao Leon de verdade, mas a um personagem que ela idealizou: “ao escrever, tinha no espírito outro homem, um fantasma composto das suas mais ardentes lembranças, das suas leituras mais belas”. E, desesperada, “desejava até uma catástrofe que trouxesse consigo a separação, visto não ter ela a coragem de se decidir”.

aparências

A adoção de modelos irreais e inatingíveis acabou por tornar Emma uma pessoa leviana, ligada às aparências e incapaz de amar verdadeiramente, porque só imaginava o amor como uma ligação entre o personagem impossível que inventou para si e o personagem inexistente do homem que idealizou. A fixação de Emma nas aparências dá a Flaubert o mote para produzir algumas das melhores imagens do livro, geralmente à moda irônica.

De fato, quando Emma reluta, por exemplo, entre aceitar a proposta amorosa velada que Rodolfo lhe faz, disfarçada de convite à cavalgada, é Charles quem fornece o impulso faltante, ao oferecer comprar para ela uma roupa nova, adequada à montaria. A dúvida de Emma se desvanece: “A indumentária fê-la decidir-se”. Se Charles não lhe oferecesse a roupa nova, talvez ela não se tornasse amante de Rodolfo.

De novo quando ela aceita o primeiro encontro sexual clandestino com o segundo amante, inicialmente resiste: o convite ao congresso carnal numa carruagem em movimento, praticamente às vistas do cocheiro, lhe parece demasiado até para seu notório atrevimento. Mas quando Leon lhe diz que “Isto se faz em Paris”, tudo muda: “estas palavras, como argumento irresistível, decidiram-na imediatamente”.

Ou seja, os escrúpulos de consciência cedem diante de trivialidades irrelevantes, ligadas às aparências. E a leviandade de Emma acaba produzindo os efeitos tristes que se vê ao final, mas que já se prenunciam na sua incapacidade de amar a própria filha, com quem não chega a ter qualquer relação verdadeira. A ponto de, a certa altura, olhando a criança que já tem alguns anos como se nunca a tivesse visto, pensa: “Que coisa estranha. Como é feia esta criança!”. A cena mostra o talento de Flaubert para dizer muito com poucas palavras: numa frase ele marca o quanto a criança era irrelevante para a mãe, que nunca a olhara com atenção, e o quanto ambas estavam distantes, porque a mãe é incapaz de sentir qualquer ternura pela menina. Tanto que, em outra cena, num de seus arroubos momentâneos de arrependimento, Emma pediu à ama que lhe desse a criança, e

fez mil perguntas sobre sua saúde, como se a filha voltasse duma viagem, e, afinal, beijando-a ainda e chorando um pouco, devolveu-a aos cuidados da criada, que ficara admiradíssima ante esse transporte de ternura.

De fato, era como se fosse um encontro de pessoas que moravam em países distintos. Berta vivia no mundo real, e Emma na terra dos sonhos.

religião

A relação esporádica entre Emma e a religião é também explorada por Flaubert em imagens que ilustram a desorientação e o desespero da protagonista, e também sua incapacidade de viver uma vida real: ela representa um personagem, na maior parte do tempo, e o representa não só para os outros, mas para si principalmente.

De se ver que desde o tempo do convento a relação de Emma com a religião já era uma tentativa de achar uma satisfação substituta para seu ímpeto amoroso, pois via o Cristo como uma espécie de amante sublimado:

As comparações de noivo, de esposo, de amante celeste e de consórcio eterno, que constantemente aparecem nos sermões, suscitavam-lhe no íntimo da alma inesperadas doçuras.

Nos momentos de desespero, diante dos insucessos das suas paixões, Emma reincidia numa espécie muito pessoal de devoção:

Emma emagreceu, andava tão triste e tão calma, tão doce e ao mesmo tempo tão reservada … Os burgueses admiravam-lhe a economia, os clientes a polidez, os pobres a caridade. Ela, porém, fremia de desejos, de raiva, de ódio. Aquele vestido de pregas simples escondia um coração revoltado, e aqueles lábios tão pudicos nada revelavam de seu íntimo tormento. Amava Léon e procurava a solidão para, mais livremente, deliciar-se com a lembrança de sua imagem. A presença dele interrompia-lhe a volúpia do recolhimento. Estremecia ao ruído de seus passos; depois, à sua presença, ia-se a emoção e nada mais lhe ficava que um grande espanto terminado em tristeza. orgulho, a satisfação de dizer consigo mesma: “Eu sou virtuosa”, e de mirar-se ao espelho, assumindo atitudes resignadas, consolavam-na um pouco do sacrifício que acreditava estar fazendo.

Tudo isso se dá quando Leon se furta à consumação do romance, e foge dela. Mais adiante, quando é abandonada por Rodolfo, tem novo surto religioso:

comunhão … sua alma, farta do orgulho, descansava afinal na humildade cristã; e, saboreando o prazer de ser frágil, Emma presenciava em si mesma a destruição de sua vontade, o que devia proporcionar ampla passagem à invasão da graça. Existiam, pois, em lugar da ventura, felicidades maiores, outro amor sobre todos os demais amores … quis tornar-se santa, comprou rosários … livros… romances de cartonagem cor-de-rosa e estilo adocicado, fabricados por seminaristas ou pecadoras arrependidas. Havia: “Pensai bem nisto”, “Introdução à vida devota”, “O homem mundano aos pés de Maria”, “Erros de Voltaire para uso da juventude”…

Emma tentava, então, construir para si um projeto de vida devota pelo mesmo caminho por onde, no passado, criara o papel da Emma-apaixonada: pelos modelos dos livros.

Mas os ritos da religião particular de Emma eram muito próprios dela, adequados ao seu modo habitual de ser: representava, como atriz, o papel de devota, imaginando que o empenho que punha na encenação tornasse real o que era fingido. E continuava a buscar numa divindade uma versão sublimada de amante, mas também este a deixava insatisfeita:

… uma exalação escapava desse grande amor embalsamado … dirigia ao Senhor as mesmas palavras suaves que murmurara antigamente ao amante, em seus transportes de adúltera. Era para avivar a fé, fazer vir a crença. Mas deleite algum descia do céu, e ela se erguia, os membros fatigados, com o sentimento vago dum imenso logro.

Perto do fim, quando também o romance com Leon desanda em marasmo e vazio, Emma volta a sentir a nostalgia da devoção; a fim de prender o amante, “com esperança de uma intervenção do céu”, põe-lhe “em torno do pescoço uma medalha da Virgem”. E quando isso não funciona, passa a sonhar com um tempo dourado da sua juventude no convento:

viu os muros do seu convento; sentou-se então num banco, à sombra dos olmeiros. Que tranquilidade nos tempos de então! Como invejava os inefáveis sentimentos de amor de que ela procurara fazer ideia pelos livros!

Trata-se de uma fantasia retroativa, outro auto-engano. Emma detestava o convento, como se vê no cap. 6 da 1ª parte. Ou seja, aqueles bons tempos só existem na sua imaginação à beira da ruína emocional. Mas a frase mostra que Emma a essa altura já percebe a diferença entre o amor idealizado que concebera a partir dos livros e a verdade, o amor verdadeiro que recebeu (de Charles) e a paixão verdadeira que temporariamente sentiu (por Leon e Rodolfo). Estava, então, concluindo sua educação sentimental.

Então, essas recaídas devocionais demarcam viradas de fase na jornada de Emma. Há cinco delas, marcando cada uma um ponto de ruptura. Na primeira Emma adolescente, no convento, lê os romances de onde tirou seus modelos ideais. Quando se frustra a primeira tentativa de romance com Leon, há um surto religioso. Depois um terceiro, quando Rodolfo a abandona. O quarto é marcado pelo momento de nostalgia diante do convento, quando já percebera a inviabilidade de sua segunda tentativa com Leon. O quinto e derradeiro vem quando Emma, moribunda, recebe a extrema unção:

Emma voltou vagarosamente o rosto e pareceu tomada de alegria ao ver de repente a estola roxa, encontrando sem dúvida, no meio de um alívio extraordinário, a voluptuosidade perdida dos seus primeiros arroubos místicos, com visões de beatitude eterna, que começavam.

E depois da unção “já não estava tão pálida e mostrava o rosto sereno como se o sacramento a tivesse salvo”.

o homem, o lobo e o leão

Emma constrói sua trajetória entre três homens que representam três visões de mundo diversas que poderiam ser metaforizadas nas figuras de animais, que os nomes escolhidos por Flaubert evocam. O personagem é como um filho para o escritor. Escritores não batizam seus personagens à toa, pensam muito antes de fazê-lo. Logo, os nomes 21 podem significar algo e dar pistas sobre o papel simbólico de cada personagem.

Charles, por exemplo, tem origem no alemão Karl, que deriva de uma palavra germânica antiga que significa “homem”. O emprego de um nome cujo significado é “homem” indica a intenção de universalizar o personagem, apresentá-lo como um representante de todos os homens, ou ao menos do homem comum. Charles figura, no livro, a visão que Flaubert tem do homem “normal”.

Por seu turno Emma é, originalmente, uma forma abreviada para nomes germânicos que principiam com o elemento ermen, que significa “inteiro” ou “universal”. Vê-se que as eleições de Flaubert não são casuais. Ele quis representar, em Emma, uma ideia universal da mulher, a sua visão do feminino universal. A intenção é a de estudar a relação da mulher ideal com o homem comum. No desenho de Flaubert, o homem comum é medíocre e lamentável; a mulher tem qualidades (coragem, ousadia, imaginação, entusiasmo) e defeitos (imprudência, insinceridade, expectativas irreais, insaciabilidade). O resumo desses retratos, me parece, Flaubert faz indisfarçadamente em favor da mulher. Enquanto Charles faz, do começo ao fim, a figura do camelo 22, Emma está a caminho do que Nietzsche chamava de super-homem: coloca a satisfação dos seus desejos dionisíacos acima do bem e do mal, e não se intimida em atropelar, na perseguição dos seus objetivos, a moral burguesa, os costumes aceitos e as opiniões do vulgo. Ao “Tu deves” que o mundo lhe opunha, Emma, com espírito leonino 23, responde: “Eu quero”.

Rodolfo

Daí ser natural, no âmbito dos símbolos envolvidos na fábula, que Emma quisesse se afastar do homem comum e buscar uma alma gêmea leonina, um leão, que é o que o nome de Leon significa. Só que antes de chegar a esse objetivo foi ludibriada por Rodolfo, cujo nome, também de origem germânica, deriva dos elementos hrod, fama, e wulf, lobo: um lobo famoso, lobo renomado, foi o que ela conseguiu, pensando que se ligava a um leão. E a conduta de Rodolfo combina com a imagem simbólica do lobo, animal destrutivo, sinônimo de selvageria, libidinagem, voracidade, que evoca o princípio do mal, é ligado ao inferno, às coisas noturnas e subterrâneas 24. Rodolfo representa bem o lobo mau da fábula. Engana Emma com uma paixão simulada, aproveita-se dela, devora-lhe metaforicamente as ilusões e a conduz a uma temporada no inferno emocional: a depressão longa e profunda em que ela cai ao ser traída representa bem uma morte simbólica.

E Flaubert desenha bem o personagem lupino, que aparece “de sobrecasaca de veludo verde” com “luvas amarelas, em contraste com as polainas grosseiras”. Essa primeira aparição já indica o caráter sedutor, mas ambíguo e perigoso, de Rodolfo. Por cima exibe uma pele verde (o sobretudo), cor que representa os sentidos e a sensação 25, a natureza, o crescimento 26, o desabrochar da primavera, o frescor, a esperança 27, mas se trata de um lobo disfarçado porque as mãos, que representam a ação da pessoa, sua manifestação, a atitude da mente e a manifestação corpórea do estado íntimo da pessoa 28 são amarelas, cor da traição e da ilusão, da inveja e da infâmia 29, a cor do enganador 30. O contraste entre a roupa elegante em cima e as polainas grosseiras em baixo é também ilustrativo: ele é alguém que por baixo é grosseiro, e o verniz de sofisticação cobre uma base rústica, rude, indelicada.

Rodolfo, cumprindo o papel de lobo, faz jus a essa combinação de cores e símbolos. Seu lema é “comecemos atrevidamente, que é o mais seguro”, e é assim que ele ataca Emma. Curiosamente, por intuição ou esperteza, dá de si mesmo uma descrição mentirosa, mas que descreve Emma, levando-a a uma enganosa identificação:

A senhora não sabe então que há almas constantemente atormentadas? Precisam alternadamente de sonho e de ação, das paixões mais puras e dos gozos mais intensos, balançando-se assim a toda espécie de fantasias, de loucuras.

Instalado no papel de amante, em casa do comborço 31

Rodolfo se acomodava como se aquilo fosse sua própria casa. A vista da biblioteca, da escrivaninha, de todo o quarto, enfim, excitava seu bom humor, e não se podia furtar de dizer vários gracejos sobre Charles, o que confundia Emma. Desejaria esta vê-lo mais grave, mais dramático mesmo para a ocasião, como daquela vez em que julgou ouvir, na aleia, ruído de passos que se aproximavam. “Vem gente!” - disse ela. Ele apagou a luz. “Tens as pistolas?” “Por quê?” “Mas… para te defenderes…” - respondeu a moça. “De teu marido? Coitado!”

A cena é cômica pelo contraste: Emma, romântica e ingênua, fantasia emoções e perigos que não existem; Rodolfo, cínico e frio, vive na realidade. A inviabilidade do romance transparece. Emma se apercebe que o amante não partilha da sua empolgação romântica, e ele percebe que está lidando com uma amante mais trabalhosa que as mulheres frívolas com que costumava lidar:

Rodolfo refletiu muito sobre a tal história das armas. Se Emma falara seriamente, pensava ele, aquilo era bem ridículo, odioso mesmo, pois não tinha ele motivo algum para odiar esse bom Charles, pois não o devoravam os ciúmes. Fizera-lhe Emma, a propósito, solene juramento que ele não achou de melhor gosto.

O juramento de mau gosto de Emma, que Flaubert só descreve assim, lacônica mas eloquentemente, é de fidelidade sexual. Mais um pequeno contraste que Flaubert explora de forma tão eficiente quanto econômica, entre a vontade de Emma de construir uma paixão livresca à base de esforço, rituais e encenação fervorosa, e o cinismo frio de Rodolfo, que só quer uma relação carnal sem comprometimento emocional, e acha de mau gosto o sentimento que Emma lhe dedica.

Rodolfo tentou asfixiar o ânimo de Emma mediante a frieza, porque

o encanto da novidade, caindo aos poucos como um vestido, exibia a eterna monotonia da paixão, sempre da mesma forma e da mesma linguagem.

Mas ela, como faria mais tarde com Leon, quanto mais é desprezada mais se apega, e por isso “redobrou de ternuras e Rodolfo cada vez menos ocultava a indiferença”.

A cena em que Rodolfo redige a carta de despedida é um belo retrato de personagem, onde Flaubert escolhe imagens muito significativas. Rodolfo

foi buscar no armário, à cabeceira da cama, uma velha caixa de biscoitos de Reims, onde guardava habitualmente as cartas femininas. Um cheiro de pó úmido e rosas murchas se evolou dela. Tomando, então, aos punhados as cartas misturadas, divertiu-se alguns minutos, fazendo-as cair em cascata da mão direita para a esquerda. Afinal, entediado. sonolento, foi guardar de novo a caixa no armário, pensando: “Que montão de bobagens!”

Para dar emoção à carta, “derramou água num copo, molhou o dedo e deixou cair uma grande gota sobre o envelope, fazendo uma mancha na tinta”, simulando uma lágrima. Sem pudor, e mostrando menosprezo, escreve à ex-amante: “Não acuses senão a fatalidade!”, e consigo pensa, sarcasticamente: “Eis uma frase que sempre produz efeito”. O que explica porque achará cômico quando, ao fim de tudo, Charles, ao encontrá-lo sabendo da traição, repetir o mesmo mote: “Foi culpa da fatalidade!”

Leon

Quando enfim Emma se une ao seu sonhado leão, sai-lhe um leão tímido, medroso. Quando conheceu Emma Leon era “o mais comedido dos estudantes, sem excessos, quer por pusilanimidade, quer por delicadezas”, e seu apelo residia exatamente nessa “timidez, mais perigosa que o arrojo de Rodolfo quando avançava de braços abertos”, o que provocou em Emma “um vago susto”. E pela primeira vez Emma foi amada por alguém que correspondia, pelo menos em princípio, ao seu ideal romântico. Só que o leão medroso foge sem consumar o amor proibido. E só bem mais tarde é que Emma, já calejada pelas decepções, terá oportunidade de consumar sua paixão por Leon, cuja “timidez se gastara ao contato das companhias mais ou menos boêmias”. E, contudo, ainda que um tanto corrompido pela vida da metrópole, Leon a amou sinceramente, ao menos no começo. Para ele

Emma era a apaixonada de todos os romances, a heroína de todos os dramas, a vaga “ela” de todos os volumes de versos. … Emma dizia palavras ternas acompanhadas de carícias que lhe arrebatavam a alma. … Não havia nada mais belo neste mundo do que a sua cabeça morena e a sua pele branca, destacando-se daquele fundo de púrpura quando, por um gesto de pudor, ela cruzava os braços nus. … Não era ela uma mulher da sociedade, uma mulher casada, uma verdadeira amante, enfim? … Contemplando-a, parecia-lhe que a sua alma, fugindo-se para ela, se lhe espalhava como uma onda sobre o contorno da cabeça, e lhe descia arrastada para a alvura do peito.

Tanto que confessa a ela: “Dos teus olhos sai alguma coisa de muito doce que me faz um bem imenso!”.

O enfraquecimento da paixão, dessa vez, foi compartilhado, e sem culpado, o que para Emma foi ainda mais duro, pois acabou percebendo que talvez estivesse o tempo todo perseguindo uma miragem, um sentimento e um modo de vida que só existiam em sua fantasia, ou que só podiam durar, na vida real, uns poucos instantes. E ela reage a essa constatação conforme determinava sua natureza indômita:

a reação de todo o seu ser a impelia mais a precipitar-se nos gozos da vida. Emma tornava-se irritável, gulosa, voluptuosa;

Emma volta ao recurso de que sempre se valeu para fabricar a felicidade amorosa e apaixonada que buscava, a representação fervorosa:

nas cartas que Emma lhe escrevia, tratava de flores, de versos, da lua e das estrelas, recursos ingênuos de uma paixão enfraquecida,

Impunha-se cada vez mais a Leon, que ele “aceitava-lhe todos os gostos; ele era mais amante dela do que ela o era sua.” Ele se assusta, se incomoda, mas mantém o afeto por ela:

O que outrora o encantava assustava-o agora, um pouco. Além disso, revoltava-se contra a absorção, cada vez maior, da sua personalidade. Não perdoava a Emma aquela vitória permanente; esforçava-se até por não a amar; depois, ouvindo-lhe o ranger das botinhas, sentia-se covarde, como os bêbados diante dos licores fortes.

E até o final vê-se que, mesmo de forma desapaixonada, Leon parece apegado a Emma. Não a abandona exatamente, mas não é capaz de acompanhá-la nos desvarios finais, quando ela, querendo arrancar da vida, à força, aventuras que não estavam em seu destino, se afunda em dívidas ruinosas de forma inconsequente. Pode-se concluir que Leon estava disposto a oferecer a Emma um amor calmo, pacífico, caseiro, talvez de longo prazo, mas desprovido de comoção e espetáculo. Um amor doméstico, como o de Charles. Exatamente o que ela mais desprezava.

Charles

Amor de verdade era o que Charles oferecia a Emma. Mas não a satisfazia, ao contrário, a irritava ao extremo:

A convicção dele de que a fazia feliz parecia à moça um insulto imbecil … A própria doçura do marido lhe causava revolta.

Emma, sentindo-se aviltada pelo casamento e suas trivialidades domésticas pequenas e sem emoção, elege Charles como

o obstáculo de toda a sua felicidade, a causa de toda a sua miséria, e como que a fivela pontuda dessa complexa correia que a prendia de todos os lados

A culpa era dele? Difícil avaliar. Charles era, por assim dizer, corno de nascença, um coitado simplório, desde sua primeira cena, ainda na escola. A melhor leitura da sua personalidade talvez seja a que fez Rodolfo, que ao final de todas as tragédias e humilhações, diante da passividade de Charles, da sua incapacidade de indignar-se, viu-o “bonacheirão demais para um homem na sua situação, cômico até e um pouco vil”.

Charles é alvo da ironia de Flaubert, e de uma espécie de humor negro, que, entretanto, o torna mais patético que cômico. Médico formado aos trancos, sabendo o mínimo e ambicionando só isso, como mostram “os tomos do Dicionário das Ciências Médicas, ainda fechados, mas com a brochura estragada por causa das vendas sucessivas de que foram objeto”. Quando tentava estudar, caía no sono 32. Mas

Os campônios gostavam dele porque não era orgulhoso. Agradava as crianças, não entrava nunca nas tabernas e, além disso, inspirava confiança pela sua conduta. Era sobretudo bom médico para as doenças do peito. Com medo de matar os clientes, não receitava senão poções calmantes;

Flaubert ironiza, aí, numa só frase, Charles e a sociedade em que vivia: ambos se acomodavam reciprocamente, iguais no convencionalismo, na timidez, na simplicidade. Ridicularizado por um concorrente, Charles

contou, à noite, esse fato, Emma exaltou-se em voz alta contra o colega. Carlos sentiu-se enternecido com isso e deu-lhe um beijo acompanhado de uma lágrima. Ela, porém, estava exasperada de vergonha; a vontade dela era espancá-lo, mas levantou-se, dirigiu-se ao corredor, abriu a janela e aspirou o ar fresco, para se acalmar. “Que pobre diabo! que pobre diabo!” - dizia ela em voz baixa, mordendo os lábios.

Flaubert expõe Charles a fazer humor às próprias custas. Emma aceita o convite de Rodolfo Boulanger para cavalgadas que são óbvios pretextos para encontros sexuais, e Charles, crédulo, não apenas insiste para que Emma aceite, para bem da saúde dela, como ainda emprega linguajar involuntariamente cômico:

Quando esta ficou pronta, Charles escreveu ao Sr. Boulanger, dizendo-lhe que a mulher estava à sua disposição e que ele contava com a sua condescendência.

E Charles, colocando a mulher à disposição do amante, carregando um canivete no bolso como qualquer roceiro, andando de luvas rotas ou com a fralda da camiseta sobrando para fora, pagando dívidas sem questionar, do seu jeito atrapalhado e inepto adorava verdadeiramente sua Emma, pois “para ele o mundo não ia além da sedosa circunferência das suas saias”. Nunca se irritou com os caprichos dela, e “quanto menos Charles compreendia aquelas elegâncias, mais o dominava a sedução delas”.

Sua falta de vigor, de imaginação, de ambição, o torna simultaneamente irritante e capaz de uma felicidade legítima, que para Emma é impossível. Sendo a ambição dela ilimitada, suas metas são inatingíveis, e sua frustração é certa. Charles, bovinamente ambicionando apenas o que já tinha, seria perfeitamente feliz, se tivesse se casado com mulher “comum”, com a sra. Homais, por exemplo. As desmedidas 33 de Emma são evidentes e numerosas. A de Charles foi só uma, casar-se com Emma. De certo modo, os dois incidem na mesma desmedida, a de querer o impossível; Emma quer um amor ideal acima das possibilidades do mundo; Charles quer o amor real de uma mulher acima de suas possibilidades.

Traído, falido, viúvo, desmoralizado, Charles permanece fiel a Emma. Descobre a carta de Rodolfo e prefere não acreditar: conta para si mesmo as mentiras que Emma contaria. Passa a usar roupas e cosméticos que Emma antes pedia, endivida-se para isso, porque “Emma corrompia-o do além-túmulo”. Retardou a abertura da escrivaninha de Emma, talvez porque inconscientemente sabia que havia segredos ali. Confrontado com a verdade, acrescenta à ruína financeira a ruína emocional: torna-se um “homem de barbas compridas, coberto de sórdidos andrajos, com aspecto bravio e que passeava chorando alto”, objeto do asco e do desprezo dos concidadãos. Mas, apesar disso, não consegue se indignar, nem odiar. Sua natureza mansa prevalece. Encontra Rodolfo, bebe com ele, e se humilha:

“Não, já não lhe quero mal”. E acrescentou uma grande frase, a única que jamais dissera. “Foi culpa da fatalidade!” Rodolfo, que fora o condutor daquela fatalidade, achou-o … cômico até e um pouco vil.

E com isso Charles acrescenta também a ruína moral ao seu repertório de falências: desiste de lutar, e, morrendo, contribui para condenar a pobre Berta à miséria.

A suma da moral de Flaubert parece ser esta: para o homem comum e honesto, incapaz de fazer o mal, sem ambição e conformado às convenções, o destino merecido é a ruína completa e vexaminosa. Para o ser humano capaz de ultrapassar a medida do comum, impor sua vontade, negar os valores tradicionais e perseguir seus sonhos abertamente, a todo custo, o destino é uma degradação igual. Flaubert, primeiro escritor realista, quis retratar a sociedade em que vivia 34. Nessa sociedade, segundo ele, só os Rodolfos, Guillaumins e Homais da vida, capazes de manter uma aparência de bom comportamento burguês e simultaneamente perseguir o sucesso sem escrúpulo, só os hipócritas ambiciosos é que entram para a legião de honra. O honesto, ambicioso ou não, está fadado ao fracasso; o sucesso é para os desonestos e ambiciosos.

reconhecimento final?

E termina assim, melancolicamente, a educação sentimental de Emma, com a constatação de que sua fome é insaciável: o amor que ela sonhava não existe, ou, quando existe, não dura, é fogo que arde até se consumir. O amor possível, que dura, é “outro sentimento, afeição, bondade, comunhão de gostos e interesses, hábito, principalmente hábito” 35. E fica conhecendo, assim, em três experiências, as três formas de amor: o desejo, amor puramente carnal, que recebeu do lobo-Rodolfo; a paixão, o amor fugaz e fulgurante, que lhe deu o leão-Leon; e o amor-bondade, manso, duradouro, monótono, que o homem comum, Charles, tinha a oferecer. O primeiro não lhe serve, o segundo não dura e o terceiro ela não suporta.

Indomável, como era, ela provavelmente continuaria a buscar o seu graal amoroso em novas experiências, mas a mensagem de Flaubert está dada, e agora resta só concluir o livro. E ele o faz de forma vertiginosa. O ritmo, que vinha lento nas duas primeiras partes, como a enfatizar o marasmo e o tédio que marcavam a vida da protagonista, se converte, na última parte, num despencar rumo ao abismo: capítulos menores, cenas rápidas, frases curtas, marcando a aceleração do compasso. A história flui “num jato”, como Emma gostava. Emma semeou ventos e agora as tempestades vêm para a colheita: terá de enfrentar as consequências dos seus atrevimentos.

Sintomaticamente o fantasma que vem assombrar Emma não é o da reprovação pelos desvios da moral sexual. Com efeito, todos em Yonville, menos Charles, sabiam das aventuras de Emma. Ela certamente não estava preocupada com a censura moral da comunidade que desprezava. Quando o grande dragão vem para o duelo final, ele reafirma o “tu deves”, mostrando que a expressão tinha um duplo sentido. São as dívidas pecuniárias que o Grande Outro utiliza para atormentar a leoa desgarrada. O castigo vem na forma de penhora e pobreza, perda dos bens e não da reputação. A bancarrota da família representa o fim da possibilidade de perseguir a vida dos ricos, ou de fingi-la, pelo menos no vestuário e adereços. Sem dinheiro, faltarão os recursos cenográficos para continuar vivendo no mundo da fantasia. Mas, muito pior, para Emma, é a perspectiva de que o assédio dos credores conduza ao fim da cegueira de Charles. Ela não teme dele qualquer repúdio ou reprovação, não teme separação ou vingança, porque conhece bem o marido. Ela sabe o que acontecerá quando ele descobrir todas as traições: “ele me perdoará”. É isso que a leva ao desespero: “a ideia da superioridade de Bovary sobre ela exasperava-a”. Não seria capaz de “esperar aquela terrível cena e suportar o peso da sua magnanimidade”, não aguentaria conviver com a compreensão e a solidariedade dele, com a continuação daquele amor bovino. Sabia que Charles aceitaria a traição e continuaria a amá-la, resignado, e isso a revoltava, porque não concebia que um “pobre diabo” como ele pudesse ser moralmente superior a ela, tão valente e ousada. O peso do perdão de Charles seria demasiado, esmagador. É por isso que ela se mata: suportaria, para perseguir seus sonhos, todas as humilhações, como, de fato, suporta. Mas essa humilhação maior que todas, o perdão, ela não aceita. E quando esse castigo supremo se torna inevitável, ela prefere a morte.

O suicídio é, então, um ato de integridade. Emma negou e enfrentou todos os padrões morais da sociedade tacanha em que vivia. Desafiou e ofendeu os costumes, as convenções, as opiniões. Afirmou sua vontade contra e sobre toda oposição do meio. Ao “tu deves” do grande dragão que é Yonville ela respondeu gritando “eu quero” 36. É capaz de aceitar a censura moral, o ostracismo, até a pobreza, tudo isso é consequência previsível da opção de ser diferente. Mas o perdão é uma punição pesada demais, porque converteria a ela, que foi brava e revolucionária, em devedora daquele a quem mais despreza, o burguês conformado, estereótipo dos valores que ela combateu. O perdão seria uma vitória do homem comum sobre o super-homem. Flaubert e Emma não podem aceitar isso. Não depois de tudo, não depois de terem ido tão longe.

Daí porque a morte de Emma não é um suicídio puro e simples. O gesto fatal é a culminância de uma via dolorosa percorrida a galope, aos trancos e trombadas, uma sucessão frenética de desastres e pequenas violências, auto infligidas ou vindas de fora. Emma luta até o fim, e cada vez mais aguerrida; ela é pura hybris 37:

parecia-lhe que a Providência se encarniçava em persegui-la, e, realçando com isso o orgulho, nunca sentiu tanta estima por si mesma e tanto desprezo pelos outros.

Percorre de porta em porta um labirinto infernal 38, ansiando por uma saída. Está disposta a tudo, aceita tudo para escapar da punição máxima, o perdão. Se humilha diante dos credores, do amante, do ex-amante, de conhecidos e estranhos, se oferece, aceita até vender o corpo, aceita qualquer indignidade, mas não o perdão. O perdão seria pior que a prostituição. E em sua jornada

não se lembrava da causa do seu horrível estado, quer dizer, da questão do dinheiro. Não sofria senão no seu amor, e conhecia que a alma a abandonava por essa recordação, como os feridos, ao agonizar, sentem que a existência se lhes vai pela chaga que sangra.

Em suma, Flaubert quer deixar bem claro que Emma não se mata por vergonha, nem por arrependimento. Seu sentimento, quando busca o veneno, é o de alguém superior e incompreendido. Ela viveu buscando um amor celestial, ardente e alucinante, uma vida emocionante e significativa, uma terra perdida da felicidade elegante e perfumada. Diante desses padrões, que é essa bagatela, o dinheiro? Que importa essa ninharia, a fidelidade? Decepcionada com o mundo e os outros, Emma se mata para não viver entre gente que despreza, num mundo que não está à sua altura. E é por isso que pode dizer: “Que coisa insignificante é a morte!”

o estilo de Flaubert

As descrições de cenário e ambiente falam sobre estados de espírito do personagem que empresta seu ponto de vista ao narrador. É um recurso estilístico bastante conhecido, mas Flaubert o utiliza melhor que a maioria: a geografia é metáfora da psique 39, e paisagens na arte representam um estado de espírito inexprimível 40. O autor utiliza a descrição do cenário para descrever estados de espírito das personagens que o contemplam. É que, como as pessoas de carne e osso, os personagens literários enxergam as coisas conforme sua situação emocional. Quando uma pessoa triste e outra feliz caminham pelo mesmo bosque, a primeira vê as sombras, o mato embaraçando os passos, a sensação de solidão, enquanto o andarilho feliz enxerga flores, pássaros e outras imagens condizentes com seus sentimentos. É que a emoção influencia a atenção 41. Daí porque na mesma casa Emma, entediada, via “aquela salinha do rés-do-chão, … a porta a ranger, as paredes salitrosas, as lajes úmidas”, enquanto Charles, amando, via o chapéu de palha da amada pendurado no fecho da janela, via a luz do sol acariciar o “aveludado das róseas faces, meio cobertas pelas madeixas”, via os dois vasos de gerânios, e se alegrava. As descrições flaubertianas são sempre daquilo que o personagem enxerga, e denunciam o que lhe vai no coração.

Por isso é preciso observar a paisagem que Emma vê, e ali descobrir o que isso anuncia sobre a paisagem psíquica da personagem:

Na valeta, entre as ervas, há compridas canas de folha cortante. Emma começava por olhar em torno, verificando se havia alguma mudança desde que fora ali a última vez. Achava no mesmo lugar as digitais, as boninas, as moitas de urtiga em volta dos grandes calhaus e as manchas de musgo ao longo das três janelas, cujas portas, sempre fechadas, caíam de podre sobre barras de ferro enferrujadas.

A cachorrinha que a acompanha, incapaz de pensar ou sentir,

dava corridas pelo campo, ladrava para as borboletas amarelas, caçava as aranhas, ou mordia as papoulas à beira dos montes de trigo.

Onde os olhos imparciais do animal mostram a presença de flores, trigo, borboletas amarelas, espaços abertos para correr, Emma, louca de tédio, só enxerga o cortante, a imobilidade, a urtiga, os calhaus, o musgo, o fechado, o podre, a ferrugem. Só vê as imagens que condizem com seus pensamentos e angústias, porque se sente fechada, enferrujando, numa relação podre, numa vida parada e imóvel, numa comunidade dura e pontuda como um calhau, fria como o musgo, e isso lhe abrasa a alma como uma urtiga. Logo a seguir

Surgiam de vez em quando rajadas de vento, brisas do mar que, rolando num ímpeto sobre o planalto da região de Caux, levavam até os campos distantes uma espécie de salgado frescor.

Emma intui no vento um chamado: longe, além, fora do seu alcance, há amplidões (como a do mar), movimento e agitação (como rajadas), forças capazes de ascender às alturas (como a brisa), lugares de frescor onde a vida não é insossa, mas tem sabor (como o sal 42).

Notar também, como mencionei antes, que nas duas primeiras partes do livro, e até o capítulo 5 da terceira, a narrativa é lenta e as descrições abundantes: o autor quer transmitir ao leitor, mediante esse recurso estilístico, a sensação de Emma, de que sua vida é parada, lenta, sem vibração. Do 6º ao 8º capítulos da terceira parte, que contam a derrocada final, o ritmo é acelerado e fremente, porque na paisagem psíquica da protagonista há agora um furacão. O modo de narrar quer agora transmitir ao leitor a sensação de queda.

A câmera onisciente de Flaubert transita de um para outro personagem, mas na maior parte do tempo focaliza um personagem de cada vez. São poucas as intervenções na voz do próprio narrador. Quase sempre ele dá voz ao ponto de vista ou ao fluxo de consciência de um personagem. Quando mais de um personagem está em cena, interagindo, Flaubert geralmente alterna os pontos de vista de um e de outro. É um recurso imersivo: raramente o texto dá a impressão de que um narrador, um terceiro, é quem conta a história. O narrador se esconde e trabalha como um entrevistador que lê pensamentos: vai conduzindo o leitor por um fluxo de imagens, pensamentos ou sentimentos que vêm dos olhos ou da mente do personagem. Em suma, Flaubert narra como se não o fizesse: faz os personagens narrarem a história a partir dos pontos de vista deles.

O narrador mais mostra do que conta, como recomendam os manuais de escrita criativa. Embora seja onisciente, prefere “filmar” cenas, gestos e cenários representativos dos estados mentais dos personagens, em vez de descrever ou explicar denotativamente 43 esses estados. A descrição das cenas, assim como a dos cenários, é sempre subjetiva: não apenas a paisagem, mas também os fatos são filtrados e interpretados pelos personagens, conforme o vínculo emocional. Veja-se esta frase:

Emma, no vestíbulo, sentiu cair-lhe nos ombros alguma coisa como se fosse um pano úmido; era o frio do estuque.

Em vez de descrever objetivamente o fato e interpretar de fora a reação emocional da personagem (como faria um amador, dizendo, por exemplo: “o estuque tornava o vestíbulo frio e isso desagradou a Emma”), Flaubert, que é mestre, dá voz à personagem e a deixa descrever subjetivamente a sensação que teve e, de novo subjetivamente, a conclusão sobre a origem dessa sensação. A imagem é muito mais expressiva do que uma descrição poderia ser. O leitor pode facilmente imaginar a experiência de, no inverno, entrar num cômodo e sentir como que um pano úmido descer sobre seus ombros: é profundamente desagradável. Flaubert desperta na mente do leitor essa sensação, que foi a de Emma, sem recorrer a tolices óbvias como “profundamente desagradável”.

Flaubert tem esse dom de comunicar muito com poucas palavras e transmitir, numa só emissão, a descrição de um fato, a sensação do personagem e o seu fluxo de consciência. Como aqui:

Emma estava debruçada à janela (ali se punha frequentemente: a janela, na província, substitui o teatro e os passeios)

Numa curta frase ficamos sabendo de um fato presente (Emma estava à janela), de um fato passado (ela faz isso frequentemente), de um pensamento que passa pela consciência da personagem (a janela é sua única diversão) e de um rol de sentimentos da personagem, que podem ser subliminares até para ela, mas o leitor capta: Emma está desanimada (sua linguagem corporal, “debruçada”, diz isso) e entediada por falta das diversões da cidade grande.

É sempre injusto comparar autores e discutir gostos, mas achei que o exemplo seguinte serve para demonstrar a eficiência de Flaubert na escolha das palavras e, principalmente, das imagens, capazes sempre de comunicar muita informação em curto espaço. Ele as transmite de forma sensorial, emocional, convidando o leitor a reconstruir em si as sensações do personagem, em vez de apenas descrevê-las. Provavelmente todos conhecem esta linda passagem de “O primo Basílio”, de Eça de Queiroz, que foi citada numa música muito executada anos atrás 44:

Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido;

Não é minha ideia acusar Eça de plágio, embora Flaubert tenha usado a mesma imagem, no mesmo contexto, 20 anos antes. Minha proposta é mostrar como a mesma imagem, na pena de Flaubert, é muito mais expressiva num texto mais transparente 45:

Era a primeira vez que Emma ouvia tais coisas; e seu orgulho, como quem repousasse numa estufa, se espreguiçava molemente e todo inteiro ao calor daquela linguagem.

O leitor já está sabendo o que Emma ouviu, não precisa que o autor lhe diga que são sentimentalidades. O autor, dando a sua opinião, tiraria do leitor parte do prazer da leitura, e estaria se intrometendo, aparecendo. Flaubert tenta aparecer o mínimo possível, tenta sempre fazer o leitor esquecer que há um narrador por ali. Eça usa um adjetivo para cada substantivo (o calor é amoroso, o corpo é ressequido, o banho é tépido), mostrando um esforço de ênfase: o autor está fazendo força para acordar a emoção do leitor. O leitor percebe esse esforço, e isso diminui a eficiência da imagem. O escritor, como um bailarino em cena, não devia deixar o público perceber a força que faz: o público só deve ver a graça do movimento, e esquecer o esforço que ele exige. Alguns escritores são atletas, na escrita o leitor percebe o suor escorrendo e as caretas de esforço. Flaubert é bailarino, esconde o esforço, seu movimento parece leve e fácil: apenas dá a imagem certeira, exata, capaz de induzir o leitor a imaginar e experimentar ele próprio a sensação de espreguiçar-se no calorzinho gostoso. Estirar é uma palavra esquisita, meio rude, lembra futebol e lesão; ressequido é outra palavra que lembra coisas desagradáveis e por isso empobrece a imagem, que não precisa do contraste para funcionar. E são termos eruditos, que pouca gente usa. Por isso são opacos, chamam a atenção do leitor para o texto, e não para a cena. Usando palavras familiares o escritor torna-as transparentes: o leitor, que não precisa pensar para captar o sentido, esquece o texto e enxerga a cena. Por isso “espreguiçar” é uma imagem muito mais atraente, e eficiente, do que “estirar”, porque usa um termo familiar, simpático e que remete a uma experiência corporal unanimemente agradável. O advérbio “molemente” é também fácil, familiar, simpático, eufônico, e principalmente tátil, sensorial: evoca no leitor uma sensação que ele conhece, relaxamento, preguiça gostosa. O leitor não é chamado a entender a cena, é induzido a experimentá-la.

Outra imagem de grande simplicidade e eficiência, em quatro parágrafos curtos e singelos, convida o leitor a assistir à entrega de Emma ao amante e compartilhar com ela a paz pós-orgástica:

Oh! Rodolfo!… — disse a jovem lentamente, reclinando-se em seu ombro.

O pano de seu vestido prendeu-se ao veludo do casaco dele. Curvou o alvo pescoço, que se dilatou com um suspiro; e, semidesfalecida, banhada em pranto, com um frêmito longo, ocultando o rosto, ela entregou-se.

Caíam as sombras da tarde. O sol poente, atravessando os ramos, ofuscava os olhos da moça. Aqui e ali, à sua volta, nas folhas ou pelo solo, tremiam manchas luminosas, como se colibris tivessem espalhado suas penas, ao voar.

O silêncio era geral. Alguma coisa de doce parecia emanar das árvores. Emma ouvia o coração, cujo palpitar recomeçava, e o sangue circulava pelo corpo como um rio de leite.

Então, ela ouviu, muito longe, para lá do bosque, sobre as outras colinas, um grito vago e prolongado, uma voz que se arrastava; e ouviu um silêncio, a confundir-se, como uma música, às derradeiras vibrações de seus nervos abalados.

Em vez de descrever um orgasmo, Flaubert põe Emma a relatar as sensações pós-extáticas, a volta à consciência. Evoca no leitor sensações conhecidas, para que ele compartilhe o instante de Emma: o religamento dos sentidos apagados é percebido primeiro como a presença do silêncio; as primeiras sensações que voltam são as internas, do corpo; o som do próprio coração vem antes; o sangue parece espesso, lento; e aos poucos a consciência do exterior vai retornando na forma de clarões; os sons externos parecem vir, e vêm, de longe, de outro mundo, o mundo da consciência, e crescem até harmonizar-se com os sons de dentro do corpo. São 154 palavras, e nelas apenas nove adjetivos e quatro advérbios. Não se vê o esforço, Flaubert não diz ao leitor o que ele deve sentir. Mostra o que Emma sentiu, e o faz sensorialmente, em termos imagéticos, concretos, familiares ao leitor, que quase sente o amortecimento e serenidade da personagem. A cena é construída com elementos plásticos, táteis, auditivos, gustativos: tecidos macios se roçam, um pescoço muito branco se curva, expiração, doçura, leite, clarões, pulsação, circulação, tremor. Flaubert convoca os sentidos do leitor a reconstruir o evento. Ele não diz que os tecidos são macios, diz “veludo”, e com isso invoca a memória sensorial do leitor, desperta nele a lembrança da maciez, sem pedir. Ele não diz que Emma está feliz, ou sentindo a doçura do momento, apenas coloca “doce” e “leite” na mesma frase, e provoca uma camada subconsciente da atenção do leitor a chamar a memória gustativa do leite adocicado, trazendo com ela a sensação agradável decorrente. O bailarino das letras não apenas esconde o seu esforço, ele se comunica com o inconsciente do leitor, de uma forma subliminar, para convocar sensações, de modo que o leitor não perceba o esforço dele mesmo, leitor, já que o texto produz o efeito almejado sem que o raciocínio tenha que colaborar. Chega a ser mais que literatura, é quase hipnotismo.

Mas Flaubert, que é realista e não romântico, usa sempre o contraste nos momentos em que o leitor está desprevenido. Depois dessa imagem suave, poética, convidando ao relaxamento, a câmera corta abruptamente para o amante:

Rodolfo, com o charuto entre os dentes, consertava com o canivete uma das rédeas que se partira.

O contraste e a montagem ideológica 46 das imagens sublinha a distância emocional entre os amantes, sua falta de sintonia. E é novamente uma pintura clara, expressiva, sensorial, que diz muito em poucas letras. Não é só a indiferença e frieza de Rodolfo que aparecem. Elas aparecem numa imagem grosseira que o leitor subliminarmente percebe como agressiva, e é, porque Flaubert escolhe palavras que induzem à livre-associação com elementos grosseiros ou ameaçadores: charuto (deixemos que Freud explique), canivete (fálico, cortante, perigoso), rédea (controle, submissão) partida (ruptura, estrago, fratura). É o ballet de Flaubert: não se vê o esforço, só a graça e a leveza. Ele não diz, ele mostra. E o que mostra é o estritamente necessário para produzir o efeito visado. Um amador escreveria algo obtuso como “Rodolfo é desagradável”. Flaubert antipatiza o leitor com o personagem sem dar sua opinião, sem se intrometer ostensivamente. Como um bom diretor de cinema, ou um bom marqueteiro, ele apenas enfileira três ou quatro imagens que atraem a idéia de desagrado, e fazem o leitor pensar que essa idéia é dele.

Para a câmera de Flaubert Emma é quase sempre o centro da atenção, é uma protagonista bem marcada, na maioria das cenas ela está em primeiro plano, ou emprestando seu ponto de vista, ou sendo vista e descrita por outros personagens. São raras as cenas em que ela não figura. Isso condiz com a proposta do livro, que é a de ser um retrato de personagem. Como essa personagem entra em relação conflituosa com os costumes da comunidade, focar nela basta para cumprir também a função de crítica de costumes, a que Flaubert se propôs.

Apesar dessa concentração da luz sobre Emma, note-se que a narrativa começa e termina por Charles. No começo e no fim do livro Emma não existe, e Charles é quem conduz o foco narrativo. Penso que isso é uma esperteza de Flaubert, porque o significado da passagem de Emma pelo mundo só se torna evidente a partir do contraste entre ela e Charles, e a apresentação de como é o mundo antes e depois de Emma dá dimensão e peso à personagem.

Já mencionei a utilização dos contrastes de imagens por Flaubert, mas as simetrias e espelhamentos também são frequentes e de grande efeito. Há uma bela simetria na cena em que Charles lê a carta de Rodolfo no mesmo lugar onde, anos antes, Emma lera a mesma carta, e ambos têm reação parecida. O “duelo” final entre os comborços acontece numa exposição de animais, em simetria com o início da relação entre Emma e Rodolfo, que se deu num evento similar. Há um cortejo no começo da relação de Charles e Emma (o casamento) e outro no fim (o enterro). A narrativa começa com Charles e termina com ele.

Flaubert constrói a narrativa com cenas íntimas, principalmente. Quase todas as cenas têm duas, no máximo três personagens no palco, que é quase sempre interno, as cenas externas são raras. As cenas de multidão, coletivas, são poucas, e sempre marcam um ponto de virada na trama. São seis cenas multitudinárias, e todas decisivas. A primeira é a aula inaugural de Charles, relevante porque não só introduz o personagem, como também o define com o caráter que sempre terá. A segunda é a festa de casamento, que representa a primeira mudança de estado de Emma. Depois vem o baile, que muda a vida de Emma para sempre. O comício rural, em seguida, marca a entrada de Emma no mundo do adultério e o começo da sua segunda relação com o elemento masculino. A ópera marca o início do segundo adultério. A próxima cena coletiva é o baile de máscaras, que marca a última reunião romântica de Emma e Leon, o fim dessa relação e da vida amorosa de Emma, que a partir do fim dessa festa entra no caminho sem volta da destruição. E então vem o velório e sepultamento de Emma, cena coletiva para marcar o final. Há, então, um sistema de imagens e uma simetria. O dia a dia, a rotina, a vida comum, se desenrolam em privado, entre o casal ou entre eles e uns poucos coadjuvantes. Já as transformações, as reviravoltas, as iniciações, são coletivas, em público. A calmaria é particular, a mudança é social.

Quanto ao cego, cuja imagem persegue Emma e marca seu instante de morte, ele é feio, doente, deficiente, miserável. É tudo que Emma não quer ser. Por isso é que a apavora. É uma espécie de espelho, um espelho deformado que mostra um futuro que ela teme, ou a imagem do que ela teme ser por dentro. A diferença entre eles pode ser menor do que parece, porque talvez ela se sinta, por dentro, dotada de uma alma feia, doente, deficiente e miserável. O cego pede esmolas uivando para o céu como um cão esfomeado; Emma uiva para o céu como uma loba faminta pedindo amor. A simetria não é aparente, mas simbólica, porque ambos são cegos, cada qual a seu modo. Ele é o que não vê, ela a que não quer ver a realidade da sua vida, dos seus amores malogrados, da exploração que faz de outros e que outros fazem dela. Ou, talvez, o cego amedronte Emma porque simbolicamente a cegueira é tratada como uma espécie de visão superior, sabedoria: o cego, na simbologia, é visto como quem ignora a realidade profana, ou seja, as aparências enganadoras, mas conhece a realidade secreta. Por isso nos mitos os adivinhos são geralmente cegos (como Tirésias) 47. Talvez Emma pressinta que ele, cego para a beleza e elegância exterior dela, enxergue com clarividência o seu interior torturado.

cenas destacadas

Howard Hawks dizia que para ser bom um filme só precisa ter três cenas boas e nenhuma ruim 48. Acho que o mesmo pode valer para um livro. Então destaquei algumas cenas que me parecem as melhores em “Madame Bovary” 49. Como são muito mais de três, algumas apenas recomendo, sem descrever.

A educação de Charles, logo nas primeiras páginas, é uma das poucas partes engraçadas do livro, e o humor de Flaubert é tão bom quanto o seu drama.

O pedido de casamento é igualmente cômico, e começa a definir o personagem Charles, que ali aparece como será durante todo o livro: medroso, indeciso. Um “sim” que vem na forma de uma pancada é um presságio poderoso.

O cortejo nupcial e a festa de casamento são um precioso retrato de costumes e personagens, e dão todas as pistas da incompatibilidade do casal. A estupefação de Charles e a indiferença de Emma na manhã depois das núpcias fazem um contraste engraçado e triste.

A fuga de Rodolfo é uma cena dramática intensa que agarra o leitor e prende o interesse. Flaubert usa mais frequentemente as cenas lentas, contemplativas, mas sabe que é bom mesmo é nas cenas de ação. Por isso, para não esgotar o truque, ele as economiza. Mas quando vêm, são poderosas.

Na cena da ópera há uma ironia interessante. Emma desdenha, cética, o romance de Lucia, acha exagerada da representação das paixões que já sabe serem pequenas e desprezíveis. Mas quando Leon aparece, e ela vê a chance de reatar o romance, esquece rapidamente a frieza e volta a agir impetuosamente.

A sedução na feira agropecuária é uma das cenas brilhantes, pelo uso da simetria e do espelhamento contrastante. Os dois sentem-se acima da multidão vulgar, literal e metaforicamente. Há um contraste bem marcado entre o vulgar e trivial da celebração agrícola, embaixo, e a louvação do amor e da aventura no andar de cima. A câmera de Flaubert focaliza alternadamente, em nítida montagem ideológica, a bela, fútil e sedutora Emma, com suas aspirações inatingíveis, e a agricultora premiada, velha, estropiada, conformada com a vida de misérias e privações, acostumada a uma rotina de cinco décadas de trabalho duro sem esperança de progresso. Confrontada com esse negativo, com essa sombra, Emma aparece engrandecida, mais nítida. Flaubert induz o leitor a à simpatia com as aspirações, aparentemente fúteis, da protagonista, quando a mostra ao lado da alternativa, daquele outro modo de ser, animalizado, sub-humano, mas socialmente aceito e elogiado. O autor, imperceptivelmente, como que pergunta ao leitor o que ele prefere, o que ele preferiria ser. É claro que o leitor pode raciocinar e concluir que existiam mais de duas alternativas. Mas a montagem ideológica de Flaubert se aproveita da distração do leitor para tentar induzir o contrário.

O episódio envolvendo Hipólito é outra daquelas acelerações de enredo em que Flaubert se sai tão bem. É trágica, triste e irônica, sela a inviabilidade de Charles, e fornece o mote para dar à cena do velório a pincelada mais lúgubre, quando o som da perna de pau ecoa pela igreja terminando de destruir o infeliz Charles.

Mas há também cenas de puro deleite para o leitor, como o encontro de Emma e Leon na catedral, seguido de uma maratona erótica dentro de uma carruagem em movimento. A cena é agitada, cômica, cheia de pequenas ironias, desenhada cinematograficamente com as imagens ricas de costume. Não é para rir. O humor de Flaubert está acima disso, ele não é cômico. É irônico, de um jeito muito maroto. Não descrevo a cena para não estragar a diversão de quem ainda não leu. Vale a pena.

Mas a melhor cena, para mim, é o final do capítulo 7, em que Emma se oferece a Binet. O que comove nessa cena não é tanto a humilhação de Emma, mas a piedade de Flaubert, o modo discreto como ele se afasta constrangido para não ver sua heroína capitular. Ele a mostrou cruamente em todas as baixezas, mas não tem coragem de mostrá-la se rendendo, aceitando a derrota. Quando, desesperada e sem saída, Emma vai se oferecer a Binet em troca do dinheiro, a câmera se afasta, e assume o ponto de vista de duas figurantes que, de um segundo andar à distância, podem ver a cena, mas não ouvem o diálogo. E é desse ponto de vista incompleto, de quem observa de longe e tem de adivinhar as falas, que testemunhamos a humilhação, que é, assim, atenuada, mitigada. É um truque que depois se vê nos filmes de Hitchcock (Topázio, por exemplo), em que o espectador pode ver mas não ouvir a cena. Só que Hitchcock usa o recurso para gerar suspense e mistério. Flaubert não. Sabemos perfeitamente o que Emma está fazendo ali, as observadoras-narradoras também o percebem, mas não ouvir o diálogo reduz, de certa forma, a degradação da personagem. Flaubert preserva-a desse vexame final, de ter de prostituir-se em frente ao leitor.

análise

No campo das conclusões, vi dois parentescos literários para Emma Bovary: Dom Quixote e Fausto.

Fausto é parente literário de Emma Bovary porque, como ele, ela ambiciona algo que está fora do alcance do homem comum, algo que não pertence ao mundo “normal”. E, para obter esse dom precioso ambos vendem a alma e aceitam terminar no inferno. Emma o faz metaforicamente, mas o pacto de Emma é apresentado em imagens claras, na forma de transações comerciais mesmo, e é Heureux quem faz o papel de Mefistófeles. Emma aceita a marca de Caim, como o Demian de Hermann Hesse, como Riobaldo, o Fausto sertanejo de Guimarães Rosa. Seu pacto é singelo: em troca de gozar os prazeres do mundo e do amor por uns anos, aceita a falência financeira e moral, e aceita destruir não só a própria vida, mas a do marido e a da filha. Quanto ao inferno, é retratado em cores berrantes nas cenas finais da personagem, que cai tão baixo quanto é possível 50.

O pacto fáustico 51 geralmente se desdobra em duas etapas, sendo a primeira uma tomada de consciência da possibilidade — e necessidade — de um modo de ser divergente do padrão, e “quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria” 52. O Fausto, depois de alguma iniciação — que para Emma ocorreu naquele baile — que lhe mostra um sonho mais ambicioso, se isola da manada: “a maioria das pessoas vive também em sonhos, mas não nos próprios, e aí é que está a diferença” 53.

No Fausto nasce, com a iniciação, a necessidade de viver o próprio sonho, ciente das dificuldades que isso trará, e por causa delas “nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo” 54. Para ele, todavia, parece não haver opção, a partir do instante em que tomou consciência, ou teve a intuição, de uma realidade superior: “o fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso” 55, e um Fausto é alguém que, por adquirir um grau de consciência superior — ou simplesmente diferente — do padrão, está expulso do paraíso da ignorância e seus confortos. Ele poderia dizer, como Riobaldo:

“sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo. Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” 56

porque o despertar fáustico não vem geralmente na forma de uma certeza, mas de um vislumbre gerador de uma dúvida que exige a busca da resposta, uma fome que exige ser saciada, mesmo que seja insaciável. No prólogo da peça 57 Mefistófeles descreve Fausto assim:

O que o tolo devora é bem celestial.
E move-o, sem dúvida, ânsia do Infinito.
De que é louco talvez ande mesmo ciente,
Quer do céu as estrelas, esse pobre aflito,
E da Terra os prazeres todos busca e sente.
De tudo o que há na terra ou céu, em alto rito,
Nada há que o console ou que o apascente.

A descrição serve para Emma (como serviria para Riobaldo ou Demian): tem ânsia do infinito, quer alcançar as estrelas do céu e todos os prazeres da terra, mas nada a consola, nada sacia sua fome, e por isso vive aflita.

De forma que o homem fáustico é premido por “um dever: procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo” 58. O pacto fáustico é uma afirmação de egotismo, de sobreposição do eu ao mundo, porque, como lembrou outro Fausto literário, Demian: “quem quiser nascer tem que destruir um mundo” 59. Esse homem consciente é o que passou pela transformação de camelo para leão, de que fala Nietzsche 60, e à sociedade que se opõe a seu projeto proclamando o “tu deves”, ele replica “eu quero” 61.

Riobaldo, quando se entrega ao transe alcoólico-místico para celebrar seu pacto, no meio do turbilhão de pensamentos desconexos que tentam relatar um evento que não cabe em palavras, lembra-se de afirmar: “eu, eu, eu!” E estava firmado o pacto, com “Deus ou o Demo ― para o jagunço Riobaldo!” 62. Notar que Mefistófeles só pode ingressar na casa e na vida de Fausto quando chamado três vezes 63. Riobaldo invoca três vezes a si próprio, pois é disso que trata o pacto: entrar em acordo com a sombra, com os próprios demônios internos 64. Essa é a segunda etapa do pacto fáustico: a ruptura com os padrões da “normalidade”, a aceitação da marca de Caim, a marca invisível mas perceptível que identifica o diferente, o forte, o incômodo 65, pois “aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo a seu lado somente os gélidos espaços infinitos” 66.

A partir desse instante, o pactário não sente mais medo (como diz Riobaldo: “aquela firmeza me revestiu”), pois, nas palavras de Hesse, “só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo” 67.

Trazido da dimensão mítica para o mundo cotidiano, o pacto fáustico nada mais é do que a hybris, a ousadia — ou a bravata — de ambicionar mais do que os costumes admitem como desejável, como sendo o quinhão do homem comum. Toda desmedida intencional é um pacto fáustico, e quem ultrapassa o metron sempre acaba em alguma espécie de inferno 68. Como Platão advertia na alegoria da caverna, quem sai do mundo ilusório dos homens comuns não é mais bem-vindo entre eles e não pode retornar impunemente.

Quanto ao Quixote, aparenta-se com Emma porque ambos perderam contato com a realidade e passaram a viver num mundo de fantasia que conheceram nos livros. São, cada um a seu modo, doidos literários. O espanhol cometeu a insensatez de crer que podia viver, no mundo real, conforme os códigos de honra e conduta de uma cavalaria que só existia nos épicos medievais. A francesa quis achar no mundo real um amor que, pelo menos na opinião de Flaubert, só existia nos romances que ela leu. Ambos os protagonistas se recusam a renunciar às suas ilusões e passam por toda sorte de desventuras e calamidades enquanto insistem em suas ilusões de papel e tinta, apesar das repetidas decepções. O cavaleiro é salvo, de certa forma, porque sua loucura é pública ou ele tem quem o proteja. A dama, porque figura numa obra que quer ser “realista”, embora também pratique suas desmedidas em público, não é salva por ninguém: o marido é incapaz de perceber o que ocorre; os vizinhos e conterrâneos, todos sabem do que ocorre, mas ninguém quer se comprometer; e os amantes não podem salvá-la. Um, porque é um vampiro covarde que não lhe tem nenhuma estima verdadeira. O outro, porque o amor que sente é menor que a vaidade.

É uma obra sobre incapacidades ou limitações. Emma é incapaz de ser feliz, de contentar-se. Obtém o que buscava, para descobrir que isso não a realiza. A incapacidade de Charles é sua mediocridade, sua incapacidade de se destacar, de competir, de ser ambicioso como Emma gostaria. Mas se Emma é uma espécie de Quixote, Charles é, então, o Sancho dela, porque representa, como o escudeiro de Cervantes, a adaptação e a capacidade de viver na realidade, conformadamente. Charles é, em comparação com Emma, aquele que sabe viver e ser feliz, dentro da sua acanhada visão de mundo. Se a marca do personagem quixotesco é a desmedida, caracterizada pelo apego a valores que não se adaptam ao mundo real, a característica do escudeiro, que é seu contraponto, é a oposta, os pés firmes no chão, o hábito de seguir as convenções e agir dentro da medida do homem “normal”.

A comparação entre Quixote e Bovary mostra uma distinção de tom e fim: o primeiro é narrado em modo irônico visando causar reflexão, e o segundo em modo trágico com intenção catártica. Cervantes usa o humor para enfatizar como os valores fantasiosos do código de conduta de seu protagonista são superiores aos do mundo real. Flaubert também utiliza o humor, especialmente o negro, e a ironia, em vários trechos, mas esse não é o tom predominante da obra, que quer comover e apaixonar. Ele não defende abertamente os princípios da sua protagonista, mas a apresenta de forma sedutora ao leitor. O caráter de Emma é apresentado francamente, sem esconder as falhas e fraquezas, mas com ênfase nos aspectos fortes, uma espécie de heroísmo bandido que conjuga coragem temerária com falta de visão. Em especial na terceira parte Flaubert exibe uma mulher trágica que queima seus navios e enfrenta o mundo hostil sem se deixar dobrar, ou seja, ele a faz empolgante, patética, no sentido culto da palavra. E ao lado dela Flaubert desenhou o tempo todo coadjuvantes risíveis, mesquinhos, fracos, hipócritas, vis ou conformados. A intenção é conduzir o leitor a tomar o partido de Emma, não pela identificação com seus princípios e métodos, mas pelo caminho emocional, pela empatia. Ao leitor provavelmente seria difícil perdoar uma adúltera irresponsável cuja obstinação arruína a vida do marido e da filha. Então Emma e Flaubert não pedem perdão; ela, aliás, o recusa, ela se mata para não receber o perdão, essa humilhação final e maior. Também não pedem compreensão, pois não existe sensatez na busca de Emma, em que a razão nunca teve lugar. Flaubert manobra as emoções do espectador para gerar simpatia, ele quer que o leitor reconheça que Emma tem todos os defeitos, mas é uma mulher imensa, trágica, que leva no peito um furacão e cavalga altiva uma vontade titânica numa disparada louca rumo ao desastre, sem arrependimento nem medo. Flaubert utiliza o contraste entre a dimensão épica das paixões de Emma e a mesquinhez sórdida, irritante, dos coadjuvantes medíocres, para que ela, na contraluz, apareça gigante, e eles ainda menores. Não é o elogio da infidelidade e da inconsequência que se vê ali, é um discreto e comovido louvor a um tipo maldito de integridade. Emma é infiel a Charles para ser inflexivelmente fiel a si mesma. Para não abrir mão de ser quem é, lança-se conscientemente em direção à ruína, prefere queimar como incêndio a consumir-se lenta e obscuramente como uma vela 69.

Emparelhados a ela, a arrogância de Homais, a ganância de Heureux, o cinismo de Guillaumin, a falsidade de Rodolfo, a covardia de Leon e a mediocridade de Charles parecem lamentáveis. E, enfim, talvez Cervantes e Flaubert divirjam quanto ao objetivo imediato, porque aquele quer do leitor reflexão, e este, emoção. Mas o objetivo mediato de ambos pode ser o mesmo: demonstrar que louco é o mundo, não o Quixote, de armadura ou de saias.

De forma que, mesmo tendo vivido mais sofrimento que felicidade, e embora tenha acabado sua jornada de forma tão desastrosa, a bela Emma poderia se consolar sabendo que foi muito amada por vários homens: Charles, Justino, Leon e, mais que todos os outros, Gustave Flaubert. E, quem sabe, também algum leitor moderno, capaz de perceber, na trajetória calamitosa da desventurada Emma, o fulgor de um espírito indomável, que foi capaz de levar a busca do seu sonho às últimas consequências e a todo custo. Enfrentando o mundo com ousadia sempre crescente, e mostrando a coragem de por sua vontade acima de tudo e de todos, sem se importar com as convenções, as opiniões, os sentimentos alheios e a própria segurança, Emma Bovary pode ser tachada de perversa, corrupta, imoral e muitos outros vícios, mas ninguém negará que ela foi tão apaixonada quanto apaixonante.

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  1. Última atualização: 23 maio 2017.


  2. “Madame Bovary” foi publicado em 1857; “Anna Karenina”, de Tolstói, é de 1877; Eça de Queiroz publicou “O primo Basílio” em 1878 e “Dom Casmurro” foi publicado em 1900. “O amante de Lady Chatterley”, de D. H. Lawrence, é de 1928. Deixo de incluir na lista a Natalia de “O eterno marido” (que Dostoievski publicou em 1870) porque o adultério que praticou só foi descoberto depois de sua morte, não servindo, assim, para comparação com as mencionadas protagonistas.


  3. Huxley, 1954.


  4. Romance publicado em 1788, muito popular na sua época, fala de amor adolescente, inocente e trágico, defendendo ideais do Iluminismo. Termina em suicídio. Resumo aqui.


  5. Notar como esse parágrafo evoca este outro, que aparece nas primeiras páginas de D. Quixote: “Encheu-se lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros, (…) tanto de encantamentos como de pelejas, duelos, ferimentos, galanteios, amores, desgraças e disparates impossíveis”. Adiante voltaremos ao tema da similaridade entre Emma Bovary e Dom Quixote.


  6. De novo o parágrafo lembra o Quixote de Cervantes: “E assentou-lhe de tal modo na imaginação que era verdade toda aquela máquina daquelas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo”.


  7. No começo do Séc. XIV Mary Stuart tornou-se rainha da Escócia com seis dias de idade, ao morrer-lhe o pai. Artista, bonita, poliglota, sofreu varíola, casou-se aos 16 anos com o rei da França, ficou viúva um ano depois, casou com um primo que acabou assassinado, depois casou com o suspeito de ter mandado matar o 2º marido, foi forçada a abdicar, guerreou para recuperar o trono, perdeu, fugiu, passou anos aprisionada em masmorras de castelos e terminou decapitada aos 44 anos (fonte). Coincidência ou não, Donizetti compôs, além da Lucia di Lammermoor, lembrada mais adiante, uma ópera sobre Mary Stuart (libreto aqui, em italiano).


  8. Heloísa de Argenteuil, nascida em 1090, viveu um dos casos de amor mais famosos da história com o filósofo Pedro Abelardo. Era linda, nobre, rica, culta e inteligente, sabia latim, grego e hebraico, tornou-se aluna de Abelardo que já era um filósofo famoso. Este a seduziu, casaram-se em segredo, tiveram um filho. A família dela, por vingança, castrou Abelardo. Ele tornou-se monge e ela freira. Continuaram a se amar por correspondência (Fonte: Encyclopedia Britannica, ed. 1911, v.1, p. 41, recuperado em 05/06/2015, 16h26m., aqui). Ela fez carreira como abadessa do Convento do Paracleto, fundado por Abelardo. Interessa notar que aparentemente a história de Heloísa é a de uma mulher que amou muito mais do que foi amada. Abelardo só teve ideia de casar-se com ela depois que a engravidou, e mesmo assim exigiu segredo, porque a notícia do casamento prejudicaria sua carreira eclesiástica.


  9. Agnès Sorel (1422-1450) foi a amante favorita de Charles VII da França, e é tida como a primeira amante real “oficial” da história. Acumulou inimigos, foi modelo em uma pintura célebre. Teve três filhas com o rei, e, quando o acompanhava, grávida, numa campanha de guerra, morreu provavelmente envenenada aos 28 anos (fonte: Encyclopedia Britannica, ed. 1911, v.25, p. 432, recuperado em 05/06/2015, 16h26m., aqui).


  10. “A bela Ferronnière” é o nome tradicional de um retrato de mulher, atualmente no Museu do Louvre, atribuído a Leonardo da Vinci. Segundo a lenda, retrata uma suposta amante do rei Francisco I da França. Ela seria esposa de um certo Le Ferron, que, enciumado, teria se infectado intencionalmente com sífilis, para contagiar, através da esposa, o rei (fonte).


  11. Adiante mencionarei que Flaubert utiliza as cenas coletivas, de multidão, festivas ou espetaculares, como pontos de virada na trama.


  12. Para dar uma olhada na pequena e pitoresca Tostes, usando os recursos da tecnologia moderna, veja este link.


  13. Tolstói já dizia: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Os moradores de Ry afirmam que foi ali que Flaubert se inspirou para inventar a sua Yonville. Vide aqui. Talvez, mas não faria sentido a carruagem passar por Quincampoix (capítulo 2 da 3ª parte) para chegar a Ry (vide o mapa do Google aqui).


  14. Lembra Mircea Eliade (1956, pp. 34-35) que culturalmente um templo é uma imago mundi e “também a reprodução terrestre de um modelo transcendente”, a “cópia de um arquétipo celeste”. “O Mundo, como obra dos deuses, é sagrado … Mas a estrutura cosmológica do Templo permite uma nova valorização religiosa: lugar santo por excelência, casa dos deuses, o Templo ressantifica continuamente o Mundo, uma vez que o representa e o contém ao mesmo tempo”. E adiante:

    “Os modelos transcendentes dos Templos gozam de uma existência espiritual, incorruptível, celeste. Pela graça dos deuses, o homem acede à visão fulgurante desses modelos e esforça se em seguida por reproduzi-los na Terra. … Por isso Salomão proclama:”Ordenaste-me que construísse o Templo em teu santíssimo Nome e um altar na cidade onde habitas, segundo o modelo da tenda santa que tu havias preparado desde o princípio" (Sabedoria, 9:8). … A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusalém não era senão a reprodução aproximativa do modelo transcendente. … A basílica cristã, e mais tarde a catedral, retoma e prolonga todos esses simbolismos. … a igreja é concebida como imitação da Jerusalém celeste …"

    De modo que erigir uma cidade consagrando-a a uma abadia da qual já não existem nem as ruínas equivale, simbolicamente, a construir uma sociedade com base em um arquétipo superado, um modelo que já não se sustenta.


  15. Veja a ideia de Mircea Eliade na nota anterior. A igreja nova é também uma imago mundi, uma representação dos modelos em que a sociedade se inspira e dos valores que elegeu. Na igrejinha de Yonville os lugares têm dono, os homens ficam por cima e as mulheres são segregadas e rebaixadas.


  16. Significativamente o leão que Emma conhecerá na Estalagem do Leão se revelará ele também um leão falso, um cão-d´água, que fugirá para não se entregar a um amor problemático. E também Rodolfo se apresentará sob a aparência de leão (amante vigoroso, soberano) quando na verdade é só um lobo, aproveitador voraz e desalmado.


  17. Apolo e Dioniso, “como forças contrárias, equivalem de certa forma à oposição Yin/Yang, se ao apolíneo fizermos corresponder o princípio Yang, sobretudo nas suas qualidades de celeste, penetrante, quente e luminoso; e ao dionisíaco o princípio Yin, como absorvente, frio e obscuro. No pensamento oriental, as duas forças ou princípios complementares abrangem todos os aspectos e fenómenos da vida tal como acontece no pensamento helênico com o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco” (Ceia). Nessa díade Apolo representa a ordem e o refreamento emocional, o belo, o íntegro, o claro, a racionalidade e a harmonia, a medida (o comedimento) (Gibelli), a serenidade (Pepe). Os mandamentos de Apolo são ordem, clareza, rigor, disciplina, trabalho, fidelidade, serenidade, simplicidade. Dioniso consistiria “na desmedida, no caos, na integração com o que há de mais natural, mais primitivo e arrebatador no homem, o universo como um “monstro” de forças”, conduzindo ao “fim de toda individuação, como um estado de êxtase onde o homem se encontra com a natureza, se identifica com ela” (Gibelli). Dioniso é embriaguez, indiferenciação, volta ao uno primordial indistinto, desmedida, o mundo subterrâneo (Pepe).

    Nietzsche estudou a presença dos dois modos de ser e pensar na tragédia grega, e concluiu ser “a experiência trágica a única capaz de justificar e até afirmar o mundo como ele é até mesmo o pior dos mundos”, porque enfatiza o amor fati, amor ao destino, consistente em “aceitar e até amar o que não pode ser mudado” (Gibelli). Por toda a obra de Nietzsche perpassa o contraste entre o espírito da ordem, da racionalidade e da harmonia intelectual, representado por Apolo, e o espírito da vontade de viver espontânea e extasiada, representado por Dioniso (Pepe), assim como a idéia de que a arte é superior a ciência por ser capaz de proporcionar uma experiência Dionisíaca (Gibelli).


  18. Diversão, ensinava Pascal, é qualquer atividade a que o homem se volta para não ter de confrontar sua angústia metafísica (Gilby, 2004). Isto é, divertir-se, ou divertir a inteligência, é pensar em outra coisa, para não pensar sobre a própria vida.


  19. Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu “erro”.


  20. Ópera de Gaetano Donizetti, estreou em 1835, é baseada em obra de Walter Scott, que Emma lia na adolescência. Lucia, a protagonista, apaixona-se por Edgardo, filho de família inimiga. Seu irmão Enrico, para separar o casal, engana Lucia, fazendo-a crer que Edgardo casou-se com outra e não a ama. Lucia, despeitada, aceita casar-se com Arturo; mas ao descobrir tarde demais o engodo, enlouquece, mata Arturo na noite de núpcias, e morre em circunstâncias não explicadas. Edgardo, sabendo da morte de Lucia, suicida-se (Donizetti & Cammarano, 1835). Há um resumo aqui. A “cena da loucura” inclui a ária mais famosa da peça, “Il dolce suono” (vídeo com a interpretação da bela Anna Netrebko, legendado em inglês, aqui), que apareceu numa versão mais “pop” no filme “O 5º Elemento” (vídeo aqui).


  21. Carrero (2015) e também Prose (2008) anotam que a questão de como chamar seus personagens é uma escolha importante que um escritor de ficção precisa fazer: tem de escolher um na miríade de termos ou designações que poderiam ter estabelecido diferentes graus de distância psíquica e simpatia entre o leitor e o personagem.

    Para todos os significados de nomes mencionados aqui a fonte é este excelente banco de dados, que não só indica o significado dos nomes, mas sua origem, etimologia, história e ramificações.


  22. Enquanto Emma esbanjava dinheiro para construir na sua cabana de Tostes um estilo de vida que imitava o das duquesas de Paris, “Carlos, exposto à chuva e à neve, cavalgava por caminhos e atalhos. Comia omeletas à mesa das herdades, metia os braços em camas úmidas, recebia no rosto o tépido jato das sangrias, ouvia os estertores, examinava bacias e erguia muita roupa suja”.


  23. Nietzsche descreve, no discurso das três transformações, a trajetória do espírito em direção ao super-homem, passando pelos estágios do camelo, do leão e da criança. O camelo representa a aceitação conformada das imposições do coletivo. O leão representa a rebeldia, a negação dos valores tradicionais e a afirmação da liberdade sobre o dever. Diz Zaratustra, personagem por cuja boca Nietzsche ensina:

    “No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!” Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.” (Nietzsche, 1885).


  24. O lobo é um tradicional psicopompo, isto é, animal que conduz a alma ao mundo dos mortos (Anúbis, por exemplo, é um cão selvagem, similar ao lobo). Como animal infernal e símbolo da voracidade, selvageria e desejo sexual (nesta última acepção, a loba é mais lembrada), o lobo e a loba aparecem na tradição muçulmana como obstáculos na estrada do peregrino rumo a Meca (que simboliza, por sua vez, a salvação). Interpretações extraídas de Chevalier & Gheerbrant (2008), Cirlot (1984) e Eliade (2007). Este último lembra que o lobo é tido como um elemento voraz que busca saciar uma invencível sensação de fome, simbolizando assim uma paixão regressiva.


  25. Cirlot, 1984.


  26. Herder Lexicon, 2002.


  27. Chevalier & Gheerbrant.


  28. Cirlot.


  29. Herder Lexicon.


  30. Conforme Chevalier & Gheerbrant, que lembram também que era costume medieval pintar de amarelo a porta da casa dos condenados por traição; e ainda que amarelo é a cor dos cães infernais.


  31. Comborçaria, ensina o Dicionário Informal, “é o grau de parentesco entre o corno e o outro”. O Aulete explica que não é um parentesco, mas um grau de relação entre as pessoas que dividem um amante comum. O marido da sua amante é seu comborço; o amante da sua mulher também é.


  32. Charles “Lia-a um pouco, depois do jantar, mas o calor da sala e a digestão faziam-no cabecear de sono ao cabo de cinco minutos; e ficava dormindo, com o queixo apoiado às mãos e os cabelos espalhados como uma crina, quase até junto do candeeiro. Ema olhava para ele e encolhia os ombros. Por que não tivera ela, ao menos, por marido um desses homens cheios de entusiasmo, desses que trabalham toda a noite nos livros e ostentam, aos sessenta anos, quando chega a idade dos reumatismos, uma condecoração na casaca preta e malfeita? Quisera que aquêle nome de Bovary, que era seu, fosse ilustre; quisera vê-lo nas vitrinas das livrarias, repetido nos jornais, conhecido em toda a França. Carlos, porém, não tinha ambições!”.


  33. Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu “erro”.


  34. Tanto que a obra originalmente tinha o subtítulo “Costumes da província”.


  35. Maugham, 1945.


  36. Nietzsche descreve, no discurso das três transformações, a trajetória do espírito em direção ao super-homem, passando pelos estágios do camelo, do leão e da criança. O camelo representa a aceitação conformada das imposições do coletivo. O leão representa a rebeldia, a negação dos valores tradicionais e a afirmação da liberdade sobre o dever. Diz Zaratustra, personagem por cuja boca Nietzsche ensina:

    “No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!” Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.” (Nietzsche, 1885).


  37. Na estrutura tradicional da jornada do herói, a hybris é o orgulho cego, a pretensão de ser especial, melhor que os demais, que leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), cair em desgraça e merecer o castigo (Brandão, 1985). A morte do herói é geralmente, nesse tipo de narrativa, a cura necessária para a hybris (Campbell, 1990).


  38. “Muitos autores escreveram inspirados pelo antigo mito da jornada ao inferno. Dante Alighieri (A Divina Comédia) foi um deles, precedido pelo personagem Enéias (da Eneida, de Virgílio) e Orfeu. Do ponto de vista simbólico mais aceito,“descer ao inferno” significa mergulhar no próprio inconsciente” (Pellegrini, 1995). “A katábasis, do grego,”ida para baixo“, é o movimento dentro das narrativas mitológicas de descida às zonas ínferas, seu mais famoso exemplo é a descida de Orfeu em busca de sua amada Eurídice. A descida as zonas ínferas é uma epifania recorrente nas religiões originárias, seja na conquista de Nifelheim por Sigurd ou na conquista do Santo Graal por Percival. A katábasis às vezes é metaforizada pelo labirinto, isto é, pela invasão do heroi aos territórios do Minotauro. O Labirinto é o Outro Mundo, ou assim como chamam os galeses, o Annwn. O Monstro que o habita é o rei deste mundo, o Zeus Ínfero” (Silva).

    “Todos os labirintos apresentam dois pontos em comum: um centro e, ao seu redor, uma estrutura de acesso muito complicada, feita de caminhos tortuosos, muitas vezes bloqueados, pensados de maneira a dificultar ao máximo a chegada ao centro. O significado simbólico dos labirintos é de tipo universal ou arquetipal: o centro representa a consciência superior, a realidade absoluta, a imortalidade, a divindade; os caminhos tortuosos que vedam quase completamente o seu acesso simbolizam as provas e dificuldades pelas quais deve passar todo aquele que pretende chegar até o “centro de si mesmo”, ou seja, a consciência superior” (Pellegrini, 1995). Emma, não achando a saída do labirinto, indica que não atingiu essa “consciência superior”.


  39. Foster, 2010.


  40. Jung, 2000.


  41. “A boca fala do que o coração tem em abundância” (Lucas, 6:45). A descrição que o personagem faz do mundo só pode ser a descrição do que ele traz no coração. Machado de Assis (1908), que sabia das coisas, escreveu: “A alma da gente dá vida às coisas externas, amarga ou doce, conforme ela for ou estiver”.


  42. Chevalier & Gheerbrant (2008, p. 798-788) anotam que o sal tem valor simbólico como purificador e conservador, que protege contra a corrosão e corrupção, e é identificado como um alimento do espírito (equivalente à sabedoria). Cascudo (1986, p. 283) também anota, com base em suas pesquisas sobre o folclore e as superstições, que o sal simboliza a conservação, a durabilidade, a garantia, mas pode também (especialmente quando derramado), simbolizar esterilidade, morte, abandono vital. Nesse sentido o chamado salgado que Emma recebe é, como todo símbolo, ambivalente: é uma promessa de vida, purificação e alimento para a fome espiritual, mas também pode conduzir à morte e a uma busca estéril, infrutífera.


  43. “Uma palavra é usada no sentido denotativo quando apresenta seu significado original, independentemente do contexto frásico em que aparece. Quando se refere ao seu significado mais objetivo e comum, aquele imediatamente reconhecido e muitas vezes associado ao primeiro significado que aparece nos dicionários, sendo o significado mais literal da palavra. A denotação tem como finalidade informar o receptor da mensagem de forma clara e objetiva, assumindo assim um caráter prático e utilitário. É utilizada em textos informativos, como jornais, regulamentos, manuais de instrução, bulas de medicamentos, textos científicos, entre outros.

    Uma palavra é usada no sentido conotativo quando apresenta diferentes significados, sujeitos a diferentes interpretações, dependendo do contexto frásico em que aparece. Quando se refere a sentidos, associações e ideias que vão além do sentido original da palavra, ampliando sua significação mediante a circunstância em que a mesma é utilizada, assumindo um sentido figurado e simbólico. A conotação tem como finalidade provocar sentimentos no receptor da mensagem, através da expressividade e afetividade que transmite. É utilizada principalmente numa linguagem poética e na literatura, mas também ocorre em conversas cotidianas, em letras de música, em anúncios publicitários, entre outros" (fonte: Norma Culta).

    O que se disse acima sobre palavras também serve para imagens, quer as do cinema ou fotografia, quer as imagens construídas na literatura.


  44. Letra e vídeo aqui.


  45. Entre várias outras classificações possíveis, pode-se dividir os autores, ou textos, em transparentes e opacos. Um texto transparente é o que consegue transmitir as idéias sem chamar a atenção do leitor para as palavras: a narração é eficiente a tal ponto que o leitor esquece que está lendo, e passa a enxergar apenas as imagens que o autor relata. Um texto opaco é aquele onde as palavras, a linguagem, constitui o elemento principal, ou pelo menos um elemento tão importante quanto o enredo; o autor quer chamar a atenção para as palavras, e a sonoridade delas, a arrumação estética do texto, é parte importante, ou a parte principal, do show. Nenhum dos dois estilos é certo ou errado, ou melhor que o outro. Há livros magníficos em escrita transparente (Hemingway, Borges, Henry Miller, por exemplo), e há obras-primas em escrita opaca (Guimarães Rosa, Joyce, o “Sargento Getúlio” de Ubaldo, “Malone morre”, de Beckett). E há livros péssimos nos dois estilos.


  46. Montagem intelectual ou ideológica, terminologia da arte cinematográfica, é uma operação com um objetivo mais ou menos descritivo que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: “uma vez reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito, em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (…) A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das partes”. A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente (Setaro, 2015).


  47. Chevalier & Gheerbrant.


  48. Gilmour, 2009.


  49. Para quem se interessar por uma investigação acerca de uma possível inspiração do livro em um caso real, há um material aqui (em francês).


  50. “Muitos autores escreveram inspirados pelo antigo mito da jornada ao inferno. Dante Alighieri (A Divina Comédia) foi um deles, precedido pelo personagem Enéias (da Eneida, de Virgílio) e Orfeu. Do ponto de vista simbólico mais aceito,“descer ao inferno” significa mergulhar no próprio inconsciente” (Pellegrini, 1995). “A katábasis, do grego,”ida para baixo“, é o movimento dentro das narrativas mitológicas de descida às zonas ínferas, seu mais famoso exemplo é a descida de Orfeu em busca de sua amada Eurídice. A descida as zonas ínferas é uma epifania recorrente nas religiões originárias, seja na conquista de Nifelheim por Sigurd ou na conquista do Santo Graal por Percival. A katábasis às vezes é metaforizada pelo labirinto, isto é, pela invasão do heroi aos territórios do Minotauro. O Labirinto é o Outro Mundo, ou assim como chamam os galeses, o Annwn. O Monstro que o habita é o rei deste mundo, o Zeus Ínfero” (Silva).

    “Todos os labirintos apresentam dois pontos em comum: um centro e, ao seu redor, uma estrutura de acesso muito complicada, feita de caminhos tortuosos, muitas vezes bloqueados, pensados de maneira a dificultar ao máximo a chegada ao centro. O significado simbólico dos labirintos é de tipo universal ou arquetipal: o centro representa a consciência superior, a realidade absoluta, a imortalidade, a divindade; os caminhos tortuosos que vedam quase completamente o seu acesso simbolizam as provas e dificuldades pelas quais deve passar todo aquele que pretende chegar até o “centro de si mesmo”, ou seja, a consciência superior” (Pellegrini, 1995). Emma, não achando a saída do labirinto, indica que não atingiu essa “consciência superior”.


  51. Fausto é um dos mitos literários mais célebres. Surgiu como lenda transmitida oralmente, reduzida a escrito por um anônimo em Frankfurt em 1587, num livro de enorme sucesso, que teve 22 edições em dez anos e foi copiado, imitado, traduzido para vários idiomas e fez fama na Europa toda. Em 1590 o célebre dramaturgo Christopher Marlowe escreveu uma peça baseada numa das versões dessa obra. Goethe trabalhou no seu Fausto, o mais famoso até hoje, de 1771 até 1832, ou seja, praticamente toda sua vida adulta. E a partir da obra dele Fausto se incorporou ao universo literário e as versões, adaptações, releituras e paródias são quase incontáveis. Como observa Dabezies (2005) entre os mitos literários Fausto é “um paradigma quase completo”.

    O Fausto das lendas orais medievais é um bruxo ambicioso que troca sua alma pelo conhecimento da magia, e sofre uma morte cruel. Sua história é redigida com intenção de fazer rir e meter medo, simultaneamente. O de Marlowe segue esse modelo farsesco, mas tem ambições um pouco mais heroicas; a comicidade é dada pelo contraste entre o sábio intelectual que não consegue se livrar das trapaças do diabo e ruma para a perdição, enquanto seu criado, um bufão burlesco, mas cheio de bom senso, escapa (um esquema similar ao Dom-Quixote / Sancho Pança).

    O Fausto de Goethe e dos românticos ambiciona o saber, “um titã em revolta contra um mundo malfeito, um individualista suficientemente audacioso para desafiar a moralidade, a sociedade, a religião”. Em algumas versões ele é salvo, ou pela nobreza de suas aspirações, ou pelo amor de uma mulher.

    O Fausto moderno segue esse modelo heroico, é um Prometeu à moda do super-homem de Nietzsche, uma figura ideal da humanidade moderna que aspira à liberdade e ao progresso, é movido pela vontade de potência.

    Porque foi uma das ideias manipuladas pelos nacional-socialistas, a figura fáustica foi estigmatizada depois da 2ª Guerra, e hoje é menos popular na literatura, talvez porque nos dias atuais “tenhamos menos necessidade de figuras simbólicas do homem às voltas com seus demônios” (Dabezies, 2005, p.339).

    Em suma, o Fausto medieval é o homem da Renascença, querendo o poder, o saber e o prazer. O romantismo o relê como um heroi modelo de humanidade, com desejo metafísico de infinito, aspirando ao conhecimento e ao amor, terminando por estender suas pretensões além dos limites da humanidade e rumando assim para a ruína. O Fausto moderno é imagem ideal do homem moderno, liberto das representações antigas e conquistando sem drama o saber e a força, mas lembrando que o homem não afasta facilmente da sua vida o mal e o erro, nem a ambiguidade dos seus poderes aumentados. Os dois motores que dão força ao mito são o ímpeto que move o homem e o peso que o mal e a tentação têm (Dabezies, 2005, p.343).


  52. Hesse, 1919, p.112.


  53. Hesse, 1919, p.114.


  54. Hesse, 1919, p.46.


  55. “The fruit of the tree of knowledge always expels us from some paradise”; a frase está num livro de William Ralph Inge publicado em 1907; fonte: Wikiquote..


  56. Rosa, 1956, p.14.


  57. Goethe, 1832, quadro 1.


  58. Hesse, 1919, p.124.


  59. Hesse, 1919, p.91.


  60. 1885.


  61. Nietzsche descreve, no discurso das três transformações, a trajetória do espírito em direção ao super-homem, passando pelos estágios do camelo, do leão e da criança. O camelo representa a aceitação conformada das imposições do coletivo. O leão representa a rebeldia, a negação dos valores tradicionais e a afirmação da liberdade sobre o dever. Diz Zaratustra, personagem por cuja boca Nietzsche ensina:

    “No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão. Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor? “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!” Valores milenários brilham nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “Em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.” (Nietzsche, 1885).


  62. Rosa, 1956.


  63. Goethe, 1832, quadro 5, cena 1.


  64. A sombra é o outro lado, o lado obscuro, inferior, da personalidade, que não se quer conhecer e se nega através de mecanismos de defesa. No processo de individuação e autoconhecimento o ego tem de entrar em contato com a sombra (conscientização e integração dos conteúdos da sombra). A sombra projetada pela mente consciente do indivíduo contém os aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis (ou nefandos) da sua personalidade. Na jornada literária-mítica, o herói (o homem primitivo) tem de entrar em acordo com o poder destrutivo da sombra e dela extrair forças para vencer o dragão. O ego tem de subjugar/assimilar a sombra antes de triunfar. Como ensina Jung, a realização da sombra (a necessidade de readaptar a atitude consciente aos fatores inconscientes, aceitando a crítica do inconsciente) é etapa necessária do processo de individuação. A sombra representa qualidade e atributos desconhecidos ou pouco conhecidos do ego, tendências e impulsos que ele nega em si, mas consegue ver nos outros, particularmente se do mesmo sexo. A função da sombra é representar o lado contrário do ego e encarnar os traços de caráter que mais detestamos nos outros. A sombra tem o poder arrebatador de impulsos irresistíveis, mas que nem sempre tem de ser reprimidos. Resistir aos impulsos da sombra requer esforço sobre-humano. Lidar com a sombra, escolher entre ceder ou resistir aos impulsos dela traz dilema ético (Jung, 2000, p.176).


  65. Hesse, 1919, p.32.


  66. Hesse, 1919, p.126.


  67. 1919, p.135.


  68. É uma paródia da frase de Inge, mas na verdade ele disse “O fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso” (“The fruit of the tree of knowledge always expels us from some paradise”; a frase está num livro de William Ralph Inge publicado em 1907; fonte: Wikiquote).


  69. Prenunciando a frase famosa da carta de suicídio de Kurt Cobain, “melhor queimar do que apagar aos poucos”. A frase na verdade apareceu antes numa canção de Neil Young (é de 1979; a letra traduzida está aqui, e o vídeo aqui).