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Guerra e Paz, resenhas
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Liev Nikoláievich Tolstói (1828-1910), com Dostoiévski, Turgueniev, Gorki e Tchecov, forma o time dos “cinco grandes†da literatura russa. Suas obras mais famosas são “Guerra e Pazâ€, “Anna Karenina†(um dos retratos femininos mais profundos e sugestivos da Literatura) e “A morte de Ivan Ilitchâ€. Na velhice tornou-se um pacifista e anarquista, além de crítico da igreja organizada. Morreu aos 82 anos, de pneumonia, enquanto fugia de casa em busca de uma vida simples. Na foto, Tolstói, que preferia escrever à mão, aparece ditando um texto para sua filha Alexandra.




LITERATURA | RESENHA
guerra e paz
Que força transforma homens de bem em assassinos? Que força movimenta as engrenagens da história? O homem tem livre-arbítrio? Os temas de Tolstói são do tamanho da sua obra.


11 maio 2008 | comente


Quando você contempla o catatau de 2500 páginas que é “Guerra e Pazâ€, e sofre para levantar da mesa os seus quase dois quilos, a primeira pergunta que vem à mente é: será que o talento de Tolstói era do tamanho da sua ambição?

Era. Tolstói tinha cacife para tocar uma novela de 2500 páginas e manter o interesse do leitor até o fim. Mais do que isso: ele tinha o que dizer, e o que tinha para dizer justificava um calhamaço assim. As questões que ele queria investigar e entender (ou pelo menos descrever) eram tão grandiosas quanto o livro que escreveu. Os personagens, as cenas, a mensagem que a obra contém estão à altura, são do tamanho do livro. Não caberiam numa obra menor.

O que Tolstói faz é traçar um enorme quadro da Europa da guerra de 1805-1812, e um quadro tão abrangente, maior que a Rússia, não cabe num olhar só. A feiura medonha da guerra, o espetáculo trágico da comédia humana, o mistério insolúvel das forças que movimentam homens e nações e transformam jovens pacatos e alegres em metódicos assassinos de multidões, tudo isso é muito vasto para ser narrado de um ponto de vista único. São necessários muitos olhos, e olhos de gente diversa, em posições sociais, culturais e espaciais distintas, para abarcar o conjunto. Os olhos do narrador precisam estar em várias partes ao mesmo tempo, e em várias alturas diferentes da pirâmide social e hierárquica, para dar conta do fenômeno a descrever. E para isso Tolstói precisa de muitos olhares prepostos, embora caiba desconfiar que a alma do autor se reparte preferencialmente entre alguns deles. É difícil não imaginar que Tolstói retrata partes da sua personalidade no cerebral e angustiado André e naquele Pedro ingênuo e meigo, personagens tão diferentes mas irmanados numa mesma fome comum, porque ambos são famintos de sentido para a existência, ambos estão desconfortáveis num mundo que parece esconder um grande segredo. Para desvendar esse mistério lançam-se em buscas por caminhos muito diferentes, mas todos os caminhos levam à guerra, e ao sucessivo, inevitável encontro com as duas faces da resposta, o Outro e o Si-mesmo. Pedro e André, em suas jornadas díspares mas de certo modo paralelas, conhecem e descrevem o ser humano, com suas misérias e grandezas, suas risíveis expectativas, sua comovente fragilidade. E cada um deles, no atrito com esse Outro que a guerra desmascara, acaba flagrando um vislumbre de si mesmo. De certo modo, por entre o rimbombo dos canhões e a doçura dos amores falsos e verdadeiros por que transitam, Pedro e André fazem uma jornada de autoconhecimento, e isso, talvez, é o que torna o livro clássico e universal: na Rússia ou em Maringá, na guerra ou na paz, nobres ou servos estão às voltas com a mesma empreitada, da qual alguns sequer têm consciência, e que cabia inteira numa tabuleta em Delfos: “conhece-te†.

sumário


a agenda de Tolstói

Se os protagonistas são movidos por essa busca, Tolstói tem sua própria agenda. Escreveu essas 2500 páginas, penso eu, buscando certas respostas.

A primeira era a descoberta de qual é a força misteriosa que converte, repentinamente, pessoas boas e de bem, gentis e amigáveis, em robôs capazes de matar um semelhante com quem, minutos antes, confraternizavam. O livro capricha na descrição dessa metamorfose absurda. Não se trata simplesmente da força que faz com que o lavrador humilde, o sapateiro cordato e alegre, o burguês romântico e sonhador, arrebanhados na massa uniformizada, matem de longe, a tiros, outros rapazes bons, que usam as cores inimigas. Dessa outra força, a que converte homens de bem em soldados, isto é, em assassinos profissionais, Tolstói trata também, mas ela é menos pavorosa, porque diz respeito a matar de longe pessoas cujo rosto mal se pode divisar. A questão número um de Tolstói é mais terrível. Trata-se da força que faz matar de perto e devagar alguém que se conhece, cujo nome se sabe, com quem se conviveu bem. Prisioneiros e carcereiros compartilham amistosamente o mesmo espaço, dividem a comida, festejam, prestam-se reciprocamente pequenos favores, tratam-se com camaradagem, e o espectador teria dificuldade em adivinhar que pertencem a exércitos inimigos. Passa-se uma hora e, sob o influxo daquela força misteriosa, desaparece a camaradagem, desaparece a gentileza, e surge, em lugar, a necessidade de cumprir a ordem de coagir, constranger, torturar, matar os mesmos que há pouco eram bem tratados. A ordem vem, e é cumprida, ainda que, como a obra destaca e insiste, os que a cumprem não queiram matar, ferir ou maltratar. Fazem-no a despeito da própria vontade, contra a própria vontade. Mas fazem-no. Sempre. A metamorfose é inexorável e tão espantosa quanto a força arcana que a deflagra.

O outro mistério que Tolstói quer desvendar é o da força que faz vencer as batalhas, que faz a diferença entre o vencedor e o vencido, contra todas as expectativas e contra a lógica matemática das aparentes vantagens e desvantagens. Como é possível que um exército menos numeroso e aparelhado derrote o mais forte? Qual o motor incompreensível que desequilibra e reverte as chances num combate? Seria o outro lado da mesma força que quebranta um exército aparentemente favorito, que tinha a vitória nas mãos e a deixa escapar? E o livro se esmera em relatar episódios assim, onde o time mais fraco vira o jogo e derruba o adversário aparentemente invencível; e, especialmente, retrata em detalhes a imprevisível virada no cenário geral da guerra, onde o exército francês, depois de tomar Moscou, perde a potência e perde a guerra, de forma inesperada. Há, segundo Tolstói, uma força misteriosa que faz a diferença, e não é o número de soldados, a qualidade ou quantidade de armas ou provisões, a estratégia dos comandantes. Há um “fator X†inefável e decisivo, que os envolvidos também não percebem, mas que muda tudo.

Pode ser outra questão, ou pode ser a mesma, mas Tolstói percorre o caso da guerra de 1805-1812 à procura também do motor da história, do que quer que seja que faz acontecer os fatos históricos. Seu ponto de vista é claro, ao menos no aspecto negativo, na explicação dos falsos motivos, as forças que não movimentam a história, apesar das opiniões dos historiadores em contrário: a vontade dos “líderes†e os planos dos governantes e comandantes. Quanto a isso Tolstói não tem dúvida: o papel dos heróis, líderes, presidentes, generais e quaisquer personagens preferidos dos historiadores convencionais é o de simples joguetes daquela força maior que realmente faz mover as massas humanas. Os heróis e líderes, por mais que as aparências digam o contrário, nada decidem e nada comandam: são movidos e mandados por forças que não conhecem nem compreendem, são tão impotentes diante do fluxo da história quanto o mais raso dos seus soldados. Aí terminam as certezas. Dizer quais são essas forças que conduzem líderes e liderados na mesma avalanche é mais difícil.

À procura desses mistérios, o da guerra e o da história, Tolstói escreveu um estudo romanceado sobre o significado e funcionamento do poder, uma pesquisa por essas duas forças, a que faz matar e a que faz vencer; seriam a mesma força, ao fim?

Não sei se Tolstói encontrou as respostas que buscava, penso que não. Mas a qualidade do livro, para além da sua força narrativa, do seu poder de arrebatar o leitor para um universo ficcional coeso e atraente, está em contradizer o senso comum e oferecer um estudo de caso e um convite à meditação sobre a verdade da história, síntese onde guerra e paz são tese e antítese em perpétuo devir. Os personagens são cobaias literárias nesse experimento para investigar se o homem tem ou não livre arbítrio. Ao que parece, para Tolstói, não tem.

experiência de leitura

Reconheço que o começo da empreitada é de desanimar os tímidos. Não bastasse o tamanho do livro, a quantidade de personagens também intimida. São seis protagonistas (veja aqui), cercados de uns dez coadjuvantes principais e fixos, e uma centena de personagens adjacentes que surgem, crescem, vivem grandes histórias em umas poucas páginas e depois encolhem. Cada um deles tem a sua função, tem um fragmento do quebra-cabeça para entregar ao leitor. Mas são muitos, muitos personagens. E todos têm, como os russos costumam ter, pelo menos quatro nomes (explico melhor aqui). Então, no início, o melhor conselho aos navegantes seria este: arranje um caderno (ou uma planilha do Excel), e vá anotando os personagens, seus vários nomes, as relações que têm uns com os outros. Depois de umas 100 ou 150 páginas você pega o jeito e pode dispensar a planilha. Depois de um terço da obra, acabou a “subida†e o livro flui prazerosamente. Depois da metade, fica difícil de largar. E na última quarta parte, já dá vontade de ler devagar, para o livro durar mais.

Para não ser desleal, aviso que o livro tem, sim, um defeito: o autor gasta um bom punhado de páginas discorrendo sobre as ideias dele acerca das causas da guerra, a natureza da história, a polêmica entre determinismo e livre arbítrio das pessoas e povos. São uns capítulos difíceis de aturar, na minha opinião. Mas pelo menos Tolstói tem “desconfiômetroâ€: suas dissertações estão em capítulos específicos, não vêm misturadas no meio da narrativa. São coisas fáceis de identificar e separar da novela propriamente dita. Então, quem quiser pode apenas pular os ensaios, e não perderá nada da parte “literária†do livro (alguns editores, em certas edições, simplesmente cortaram fora esses ensaios). Não é falha que comprometa a grandeza da obra ou estrague o prazer do leitor. É um defeito perdoável em comparação com as qualidades. Não fosse ele, o livro seria sublime. Com o defeito, é “apenas†um clássico.

Aqui, os personagens são duplamente personagens, porque representam, ficcionalmente, caracteres verdadeiros, entremeados com fatos reais. Cada um deles, além de ser a pessoa imaginária que movimenta a ação do livro, é também o representante de uma ou muitas pessoas reais que viveram os fatos verídicos que Tolstói entremeia com o enredo imaginário que trata das questões particulares dos protagonistas. É como se houvesse dois livros no mesmo: um, puramente ficcional, é feito dos dramas particulares dos protagonistas e seus núcleos; outro, o que trata dos fatos da guerra e da política, é uma espécie de documentário, e seus personagens são figuras históricas reais. Tolstói embaralha as duas histórias, intercalando cenas do documentário com as da novela ficcional, de modo que o leitor não se cansa nem de uma nem da outra.

o estilo de Tolstói

O estilo de Tolstói é “simplesâ€, sem nenhuma conotação pejorativa nisso. É um modo de escrever caseiro, de conversa ao pé do fogo, que deixa o leitor à vontade. Não há, no texto de Tolstói, artifícios narrativos sofisticados como idas e vindas no tempo (o texto é cronológico e direto), metáforas complicadas ou aqueles longos monólogos internos dos personagens torturados de Dostoiévski. Não há fluxo de consciência nem nenhuma das novidades literárias que apareceriam uns cinquenta anos depois. Também não há aquele diálogo maroto com o leitor, ao estilo de Machado de Assis. É um texto direto, que conta a história, simplesmente. A pessoa do autor aparece frequentemente, mas sempre ostensiva, e com a mesma intenção professoral, de avançar explicações sobre o sentido da história, que serão depois longamente (muito longamente) reiteradas no epílogo. Como disse, é o único defeito do estilo, na minha opinião. Quanto ao mais, é um livro que agrada a todo tipo de leitor, justamente por não ter fricotes e adereços estéticos sem função.

É, na prática, um “novelão†ao estilo da Globo, com várias mocinhas e núcleos, e a ação, dividida em capítulos, vai alternando entre um núcleo e outro. Um esquema familiar para o espectador de novelas de TV, e que torna a leitura mais leve. Tolstói mostra que para construir um grande livro não é preciso firula: basta um texto de qualidade, um enredo consistente e, principalmente, bons personagens. É nisso que ele é melhor: não bastasse ter um enredo cheio de reviravoltas e surpresas para entregar, Tolstói não descuida do ingrediente principal da escrita de ficção, o personagem. Os dele são mutáveis, crescem e aprendem, e soam autênticos sempre.

A “câmera†imaginária de Tolstói vai mostrando ao leitor, alternadamente, a visão de um e de outro personagem, focalizando mais frequentemente os protagonistas, especialmente Pedro e André. Mas há muitas e muitas cenas narradas pelo ponto de vista de personagens menores, alguns que aparecem só para mostrar um acontecimento isolado, que se converte numa espécie de conto embutido na história principal. Algumas das melhores cenas, aliás, estão exatamente nesses “contos embutidosâ€, como, para citar dois exemplos, as aventuras de Alpatich em Smolensk, e a cena em que Pétia vê o imperador.

A “câmera†alterna também entre nobres e pobres, e nisso reside uma característica muito apreciável do livro, que, nesse ponto, lembra Machado de Assis: os protagonistas são todos ricos bem-nascidos, mas em torno deles gravita uma multidão de pobres, por vezes sem nome, que fazem tudo acontecer, e que são os personagens mais “vivosâ€, mais interessantes. Pode-se dizer, de certa forma, que há um grande personagem coletivo, que é o povo russo, e cujo espírito Tolstói tenta descrever. Algumas das grandes cenas do livro são protagonizadas por esse personagem coral, sem nome, composto da gente miúda que é esmagada pelas rodas da história e tenta sobreviver. A cena em que os servos se revoltam contra a princesa Maria, e a seguinte, em que Rostov os domina, são exemplos desse esforço de Tolstói para dissecar o funcionamento da alma russa. Da mesma forma as cenas tocantes e um tanto irônicas que relatam o abandono de Smolensk e depois de Moscou são ótimas, e têm a mesma intenção sociológico-psicológica.

Tolstói tinha um especial interesse no fenômeno da morte, que aparece aqui, na narrativa da jornada espiritual de um dos protagonistas enquanto agoniza e, agonizando, faz suas descobertas mais importantes. Só essa narração, dos pensamentos e sentimentos do agonizante, das radicais mudanças de perspectiva e valores que precedem o fim da vida, servia para justificar um livro, e um grande livro. É um dos pontos altos da obra, e ali Tolstói, ao contrário do que faz nas dissertações, expõe sua filosofia com elegância, despertando interesse. Ele viria a repetir o tema em “A morte de Ivan Ilitchâ€, anos depois, mas aqui a força emocional e intelectual da cena é maior.

os protagonistas

São seis os protagonistas de GEP, três homens e três mulheres, muito diferentes uns dos outros.

Entre os homens, pode-se dizer que André representa a cabeça, a inteligência, a razão. Pedro é o coração, o sentimento, o espírito. E Nicolau é o ventre, os sentidos e a carne, as coisas da terra e da sensação. Naquela imagem das três partes da alma, de Platão, André é a parte racional, Pedro a irascível e Nicolau a concupiscente. Sendo assim diferentes, cada um deles vê a guerra de um modo próprio, e cada um deles aprende a seu modo certas lições que lhes dizem respeito.

Do lado das mulheres, Helena é cerebral, mas usa a razão para finalidades bem diversas das de André. A busca dele era de um sentido para a existência, e a de Helena é mais singela: ela busca riqueza, status e prestígio. Maria é o coração, é uma versão feminina de Pedro. E Natasha é a versão feminina de Nicolau, tanto assim que, ao contrário do que se podia suspeitar no início, realiza-se ao final num estilo de vida maternal, conjugal e caseiro, que corresponde bem à sua personalidade (o mesmo acontece com Nicolau, que, depois de tantas aventuras e ansiedades, realiza-se na vida ordeira e pacata de ruralista e chefe de feudo).

Os protagonistas masculinos são prepostos do autor na sua busca existencial. Cada qual, a seu modo, descobre — ou constroi — um sentido para sua existência, ao fim da jornada de guerra e paz. Partem de níveis diferentes de sabedoria, porque cada um é mais ligado a um aspecto da condição humana, razão, coração e sensação. E por isso seus resultados se diferenciam, também. André, o cerebral, encontra a resposta da sua investigação racional numa resposta emocional: aprende a amar a todos os seres humanos. Na sua jornada, é a razão que se espiritualiza. Pedro, o emocional, aprende a ser menos guiado pelo coração e torna-se mais racional e menos ingênuo e manipulável. Nicolau aprende a ser comedido, ordeiro, contido, laborioso, ou seja, liberta-se da sua condição inicial de preguiça, comodismo e sensualidade.

As mulheres de GEP estão presas à condição do mundo patriarcal e semifeudal em que vivem. E, mesmo ali, encontram seus espaços de poder. É interessante, especialmente ao final, ver como em todas as casas, nominalmente chefiadas pelos seus homens, as conversas políticas se desenrolam entre os machos, no salão, mas refletem o que foi decidido — ou ditado — pelas mulheres nas conversas íntimas de alcova. E, por todo o livro, se vê como nos grandes salões da sociedade, onde tudo se discute, onde as relações são estabelecidas e onde a política e a economia tramitam pela via dos casamentos de interesse e das fofocas, são as mulheres as líderes. São elas que convidam, que escolhem quem conversa com quem, e que resolvem as questões matrimoniais unindo famílias e interesses. Nenhuma delas chefia um exército ou empunha armas, mas, a seu modo, Tolstói homeageia as mulheres: nenhuma das suas personagens é fraca, desprovida de inteligência. São, todas elas, mais sábias que os homens a quem formalmente parecem subordinadas. Basta ver que não são elas que fazem a guerra.

nomes russos

Russos têm sempre três nomes. Um prenome, um patronímico (nome do meio que indica quem é o pai), e o nome de família (sobrenome). Assim, André, que é filho de Nicolau e pertence à família Bolkonski, chama-se André Nikolaievitch Bolkonski. André tem um filho chamado Nicolau, como o avô. E a criança se chama Nicolau Andreievitch Bolkonski (o nome do meio indica que é filho de André).

Além dos nomes, todos têm um apelido. Macha é apelido de Maria. Nicolau é apelidado Nicolenka ou Kolya. Pedro é Pétya. Melhor fazer uma lista com todos os nomes de cada personagem, para não se perder.

Os nomes do meio e de família têm as mesmas funções mas variam de forma no feminino. Maria, irmão de André Nikolaievitch Bolkonski, é Maria Nikolaievna Bolkonskaia. Helena, irmã de Anatole Vassilievitch Kuraguine, chama-se Helena Vassilievna Kuraguina. O sufixo evna é feminino e o sufixo vitch masculino.

De uma edição para outra os nomes dos personagens são traduzidos (ou não) de formas diferentes. Então, no seu livro André pode se chamar Andrei, Nicolau pode ser Nikolai, e assim por diante.

Chama a atenção, também, a enorme quantidade de personagens com título de príncipe. Rurik de Kiev, um viking que que viveu no século IX, fundou a primeira dinastia de czares russos. Até a Revolução de 1917 todos os descendentes (reais ou supostos) de Rurik tinha título de príncipe. Estima-se que havia mais de 2000 príncipes na Rússia na época em que se passa o livro.

conclusão

Ao contrário do que popularmente se diz, Napoleão não foi derrotado pelo inverno russo. Ao menos essa é a tese de Tolstói: para ele os franceses foram vítimas de uma armadilha colocada em seu caminho pelo povo russo. A França, diz Tolstói, perdeu a guerra porque não pode resistir à isca gorda e apetitosa que era Moscou abandonada. Na narrativa de GEP, os franceses, tomando a cidade rica, cheia de tesouros e recursos, se deixam amolecer. Tornam-se presas da ganância, deixam de pensar na guerra e passam-se a ocupar-se apenas do saque. Cada soldado torna-se inimigo do outro, porque tornam-se todos competidores pelo mesmo butim. Cada qual cuida de arrancar de Moscou o quanto puder de riqueza, de bens abandonados pelos russos. A disciplina desaparece, e o sólido exército se converte em vários bandos concorrentes de ladrões desordeiros, sobre os quais os comandantes não tem nenhum controle (quando não estão simplesmente associados no saque). Ao sair da Moscou arrasada, o exército francês já sai derrotado: pesado, inchado pela carga saqueada, sem disciplina ou motivação. As cenas que descrevem a saída dos franceses de Moscou são eloquentes: um interminável engarrafamento de carruagens e carroças roubadas, carregando o enorme peso de tudo que havia de valor na capital, impedindo qualquer ordem ou comando. Agora, cada soldado francês só quer salvar e levar para casa a fortuna, pequena ou grande, que arrancou da Rússia. A partir daí, não existe esperança para os franceses. O encontro com o inverno, durante a retirada, é uma casualidade infeliz: enquanto havia o que saquear, Napoleão não tinha poder para tirar o exército de Moscou; quando o fogo acaba com a cidade, não tem mão sobre o exército, que perdeu para a riqueza saqueada. E o inverno se aproxima.

Tolstói é abertamente contrário à ideia de herói, mas há um personagem histórico, real, que evidentemente quis homenagear, o general velho e obeso que parece ver a vida de um ponto mais alto que seus contemporâneos, e que “comanda†o exército russo sem o comandar, sem nada ordenar, simplesmente deixando que as coisas aconteçam espontaneamente, naturalmente. Talvez o Kutuzov do livro não seja real nem verossímil, mas encarna perfeitamente a ideia de Tolstói acerca da história: uma força externa incontrolável, à qual quem é sábio não busca resistir.

Enfim, faltou falar de muita coisa. Faltou falar, por exemplo, da ironia histórica em que consistiu essa guerra entre a França e uma Rússia que amava e idolatrava os franceses, copiando sua cultura ao ponto de os nobres sequer saberem falar russo: todos falavam apenas francês. Chega a ser engraçada a descrição de como, diante do avanço napoleônico e da ira da população pobre, os ricos se obrigavam a contratar professores para aprenderem a falar russo, a fim de não serem hostilizados pelos próprios criados. Faltou falar de uma sequela dessa francofilia russa, que era a divisão da alta sociedade em partidos informais, um dos quais continuava favorável aos franceses e conseguia enxergar a guerra que matava milhares de seus compatriotas como um simples “mal-entendidoâ€. Faltou falar da sutileza e sarcasmo com que Tolstói critica a vida da alta sociedade, que se resume em tráfico de influência, apadrinhamento, conchavos e ócio (Bóris e Vassily são os personagens que geralmente nos conduzem por esse mundo corrompido: o primeiro mostrando como é o caminho de ascensão, e o segundo mostrando como a vida funciona lá no alto). Faltou mencionar o contraste doloroso entre o tratamento cavalheiresco, esportivo, que se dispensava aos prisioneiros no início do conflito, e a trágica condução das manadas de prisioneiros do final da guerra para uma morte cruel de frio e fome. Faltou falar de como Tolstói insinua apenas o suficiente para dar a entender o horror da guerrilha, esse lado feio, sujo e decisivo da guerra, muito diverso da elegância do “trabalho†pretensamente nobilitante do exército regular.

Ao fim, não sei se cabe uma conclusão sobre a matéria de estudo de Tolstói. Suas teses não me pareceram convincentes. Mas a narração que faz, a descrição dos homens e dos seus feitos, do horror da guerra e do patético da condição humana, fala mais e fala mais alto que qualquer dissertação. Se Tolstói não é muito bom em explicar e discorrer, ele é bem sucedido em mostrar, insinuar, oferecer o material para a reflexão pessoal do leitor. Se não nos ganha pelo caminho da razão, da ciência, Tolstói é mestre na arte e cativa o leitor pelo caminho da intuição e da sensibilidade. O livro termina por mostrar, nas entrelinhas, que guerra e paz são aspectos internos do homem, e lutam dentro do homem sem cessar. Uns poucos, à custa de penas e dores, encontram ocasionalmente um caminho para fazer prevalecer dentro de si a paz.

Frases anotadas

A seguir colecionei alguns trechos do livro, que me parecem bons exemplos do talento de Tolstói. Estão agrupados por tema.

A Guerra

A finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra. Quais os costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina, a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez, E, apesar de tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. (...). Todos os reis, à exceção do imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas reservam-se para aquele que mais gente matou.

no xadrez, antes de mexeres uma pedra, te é dado pensares o tempo que quiseres, o tempo não urge: e com esta diferença ainda: que o cavaleiro é sempre mais forte que o peão, que dois peões são sempre mais fortes do que um, enquanto na guerra um batalhão às vezes é mais forte que uma divisão e outras mais fraco que uma companhia. Ninguém é competente para conhecer a força relativa das tropas. (...). O êxito nunca dependeu, nunca dependerá, nem da posição, nem do armamento, nem mesmo do número de tropas, sobretudo nunca dependeu da posição. - Então de que depende? - Do sentimento íntimo que existe em mim, naquele - apontou para Timokine -, no sentimento íntimo de cada soldado. (...). É um fato que estes duzentos mil homens se vão bater e que sairão vencedores aqueles que se mostrem mais encarniçados na luta e que menos se compadeçam de si próprios.

A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível necessidade.

ia haver luta nas barreiras da cidade, distribuíam-se armas, os habitantes fugiam por todos os lados, numa palavra, davam-se fatos extraordinários, coisa sempre muito divertida para quem é novo. (...) Os preços das coisas também diziam muito. As armas, o ouro, os carros, os cavalos, aumentavam constantemente de preço enquanto baixava continuamente o valor do papel-moeda e dos objetos de luxo, e de tal maneira que por volta do meia-dia os panos, por exemplo, valiam menos de metade do seu preço habitual. Em compensação, um cavalo de aldeão chegava a pagar-se por quinhentos rublos. E os móveis, os espelhos, os bronzes, cediam-se por qualquer preço.

compreendeste a disposição das tropas? - perguntou-lhe o príncipe André, interrompendo-o de súbito. - Compreendi! Ou antes - acrescentou Pedro -, como não sou da profissão, não posso dizer que tenha compreendido completamente, mas apreendi o plano geral. - Então sabes mais que ninguém - tornou-lhe o príncipe

“O regimento de cavalaria caminha para o combate e os soldados cruzam o comboio dos feridos e nem por um segundo lhes vem à cabeça o que os espera e ao passarem ao lado deles piscam o olho a este e àquele. E, embora vinte mil vão ao encontro da morte, o meu chapéu diverte-os! Que estranho!â€,

Mais um romance - comentou o miliciano. - Estou a ver que esta debandada geral foi inventada para casar as solteironas.

Tomar uma fortaleza não é difícil; difícil é ganhar uma campanha. E para isso não é preciso tomar de assalto e, atacar, mas ter “paciência e tempo diante de nósâ€. nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo!

Era evidente que ouvia pelo fato de ter ouvidos e porque, apesar do algodão que lhe rolhava um deles, não podia deixar de ouvir. Mas também era certo que nada que aquele general lhe dissesse seria capaz de o surpreender ou sequer interessar, a ele, que de antemão sabia tudo quanto lhe pudessem dizer e que escutava apenas porque assim tinha de ser, pela mesma razão que se tem de ouvir até ao fim um ofício divino. O que Denissov expusera era prático e sensato e o que o general de serviço dissera ainda era mais prático e mais sensato. Mas a verdade é que Kutuzov menosprezava tanto o saber como a inteligência e estava certo de que havia de ser uma coisa muito diferente - uma coisa independente por completo do saber e da inteligência - que resolveria a questão.

Um bom militar nem precisa de ser gênio nem de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência.

a guerra principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.

Se as pessoas fossem para a guerra só por convicção, não haveria guerra

prestou uma grande atenção às conversas de Bagration com os oficiais comandantes e às ordens que ele dava, e com grande espanto seu verificou que ele não dava ordem alguma: tudo quanto fazia era apenas dar a entender que o que se passava por força das circunstâncias, em consequência do acaso ou mercê da intervenção dos diferentes comandantes acontecia, se não graças às ordens que ele dava, pelo menos de acordo com os seus planos.

Generais e soldados sentiam não serem nada, não passarem de grãos de areia de um oceano humano, bem conscientes da sua força enquanto elementos daquele todo imenso.

Nós, civis, temos, como sabe, o mau hábito de decidir quando uma batalha é uma vitória ou uma derrota.

O imperador quer conceder a todos os comandantes de divisão autorização para fuzilar os salteadores, mas tenho o meu receio de que esta medida venha a obrigar metade do exército a fuzilar a outra metade.

A única maneira de acabarem as guerras é sangrar os homens

Esta condição de ociosidade imposta e não censurável é aquela em que vive toda uma classe social, a dos militares. Em tal ociosidade está e estará o principal atrativo do serviço militar

boas cenas

Aqui selecionei duas passagens de cenas que considero muito boas, e servem de aperitivo para a obra. A primeira é um fragmento da narrativa da batalha que Tolstói descreve com mais cuidado, porque foi a decisiva. É narrada do ponto de vista de Pedro:

Ao subir os degraus que davam acesso ao cabeço, Pedro olhou lá para baixo e quedou extasiado diante do espetáculo que se lhe oferecia. Era o mesmo panorama que contemplara na véspera, mas agora toda a campina estava coberta de soldados e de fumo, e os raios oblíquos do sol, que se erguia por detrás e à esquerda de Pedro, inundavam-no, através da atmosfera diáfana da manhã, de uma deslumbrante luz dourada com resplendor rosado e grandes sombras negras. Os bosques longínquos que fechavam o panorama pareciam talhados numa pedra preciosa verde-amarelada e as suas encostas recortavam-se em linhas ondulosas, (...). Aqueles novelos de fumo e, por estranho que pareça, as detonações que os acompanhavam constituíam a beleza principal do espetáculo. (...). não obstante o tiroteio intenso, não lhe veio à mente que se encontrava em plena batalha. Não ouvia as balas que assobiavam de todos os lados nem as granadas que lhe passavam por cima da cabeça; não via o inimigo na outra margem do rio, e levou tempo a perceber que eram mortos e feridos que caíam a seu lado. Olhava para tudo com o sorriso que lhe não saía dos lábios. (...). As balas não trazem endereço. Quando caem, até as tripas se nos arrepanham. Ninguém há que não tenha medo (...). quanto maior o número de mortos e feridos mais crescia a excitação dos artilheiros. (...). Por instantes cravaram os olhos um no outro, assustados, perplexos, sem saber o que tinham feito nem o que deviam fazer. Cada um deles se perguntava a si próprio: “Sou eu ou ele quem está prisioneiro?†(...). Dos diversos pontos do campo de batalha estavam sempre a chegar ajudantes-de-campo expedidos ao imperador, oficiais de ordenança dos marechais encarregados de trazer informações sobre a marcha da batalha, mas tudo o que diziam era falso, pois no calor da batalha não se podia dizer o que estava a passar-se num determinado momento e, aliás, muitos destes oficiais não podiam atingir sequer os pontos designados, limitando-se a repetir o que ouviam. Além disso, enquanto eles percorriam as duas ou três verstas que os separavam de Napoleão, as coisas modificavam-se e as notícias por eles trazidas deixavam de corresponder à situação. (...). Guiando-se por estas informações, evidentemente falsas, Napoleão dava ordens já cumpridas ou que teriam sido impossíveis de executar. (...). numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso, ou seja, na própria vida, e o que pode acontecer é que umas vezes a salvação esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante. (...). Na verdade, todos estes movimentos para a frente ou para trás não aliviavam nem modificavam a posição das tropas. Esses ataques, quer a pé, quer a cavalo, não produziam grande mortandade; o que semeava os ferimentos, as mutilações e a morte eram os projéteis, as balas que voavam por todos os lados na área onde se moviam as tropas. Logo que os homens atingiam a zona a que os projéteis não chegavam, os comandantes, na retaguarda, obrigavam-nos a cerrar fileiras, restabelecendo a disciplina, e, graças a esta disciplina, voltavam a expedi-los para aquele círculo de fogo onde o medo da morte os fazia perder de novo o sangue-frio, entregando-os ao cego instinto das multidões. (...). Kutuzov (...) não dava qualquer ordem, contentando-se em anuir ao que lhe vinham propor ou simplesmente discordar. “Sim, sim, faça issoâ€, respondia ele. “Sim, sim, vai verâ€, dizia, a este ou àquele dos seus subordinados. Ou então: “Não, é inútil, é melhor esperar.†Ouvia as informações que lhe davam, não dando ordens senão quando os subordinados lhas pediam. (...). A sua larga experiência da guerra, a sua prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas de milhares de outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se chama “o moral das tropas†e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do possível. (...). nos assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai vitorioso (...). Não foram os termos da própria ordem que se transmitiram até aos últimos anéis dessa cadeia. No que cada um contava ao vizinho nada havia mesmo que se parecesse com o que Kutuzov dissera, mas pelo menos era o sentido das suas palavras que se transmitia, pois essas palavras emanavam, não de considerações mais ou menos astuciosas, mas dos sentimentos profundos que animavam a alma do general-chefe, como, aliás, a alma de todos os russos. (...). nada tinha a ensinar-lhes. Todas as forças da sua alma, como as forças da alma de cada um dos seus soldados, não tendiam inconscientemente a outra coisa senão a não pensar no horror da situação em que estavam.(...). A cada nova descarga os que ainda estavam vivos menos probabilidades tinham de se salvar. (...). Todos estavam igualmente silenciosos e taciturnos. Poucas palavras se trocavam entre eles, e essas mesmas eram interrompidas de cada vez que caía um projétil e ressoava o grito: “Padiola!†A maior parte do tempo os homens, por ordem dos comandantes, estavam sentados no chão. Este, tirando a barretina, entretinha-se, com toda a minúcia, a fazer e a desfazer a corrediça; aquele limpava a baioneta com argila seca que se lhe esfarelava nas mãos: havia os que desmanchavam o correame e voltavam a afivelar os seus equipamentos; e ainda os que desenrolavam as grevas e voltavam a enrolar. Alguns construíam abrigos com caniços ou entrançavam esteiras com palha dos campos. Todos pareciam absortos nestas ocupações. Quando os seus camaradas caíam mortos ou feridos e eles viam passar as padiolas, quando os russos recuavam, ou através da fumarada se desenhavam as massas compactas dos soldados inimigos, ninguém entre eles prestava a mais pequena atenção a qualquer dessas coisas. (...). Dir-se-ia que aquela gente, moralmente esgotada, encontrava repouso nas ocupações habituais da vida quotidiana. (...) essa espécie de distrações durava apenas alguns minutos e havia já mais de oito horas que estavam inativos e sem nada comer sob o contínuo horror da morte. (...). Sem se mover do mesmo lugar e sem haver disparado um único tiro, o regimento perdeu ali um terço dos seus efetivos. (...). Enevoara-se o céu e uma chuva fina caía sobre os mortos, sobre os feridos, sobre aqueles homens extenuados, tomados de pânico, que principiavam a duvidar. Parecia gritar-lhes: “Basta, basta, infelizes! Cessai... Tomai tento! Que estais a fazer?â€


Aqui, uma cena tocante em que André vê seus comandados, num dos intervalos entre as batalhas, divertindo-se numa represa:

donde vinham gritos e risadas. Aquela pequenina extensão de água turva, cheia de juncos, parecia ter crescido mais dois palmos e inundava já a comporta, tantos eram os corpos brancos e nus que nela chafurdavam, de mãos, rostos e pescoços encarnados cor de tijolo. Toda essa carne humana chafurdava entre as gargalhadas e gritos naquele pântano lamacento, como carpas dentro de uma selha. Uma vaga tristeza se derramava daqueles alegres folguedos. Um soldado louro, das relações pessoais do príncipe André, da 3ª companhia, com uma correia na barriga da perna, persignou-se e recuou alguns passos para dar uma corrida e mergulhar na água; outro, um sargento, trigueiro e cabelos sempre revoltos, metido no tanque até à cintura, agitava o busto musculoso, resfolegando alegremente, enquanto salpicava a cabeça com os braços queimados até ao pulso. Só se ouvia chapinhar e gritar. (...) “Carne, corpos, carne para canhãoâ€, pensava ele, despindo-se também, e tremendo menos de frio que à lembrança dessa massa de corpos que chafurdava no tanque cheio de lama: sentia ao mesmo tempo desgosto e pavor, embora não soubesse explicar o porquê desses sentimentos. (...)


Depois, ferido, no hospital, relembra aquela cena anterior, à vista dos soldados feridos:

O espetáculo que tinha diante dos olhos confundia-se numa única impressão geral de corpos humanos nus e ensanguentados que pareciam encher por completo toda aquela tenda de teto baixo, exatamente como, semanas atrás, num cálido dia de agosto, os corpos que vira dentro do tanque lodoso na estrada de Smolensk. Sim, era a mesma carne, precisamente essa carne para canhão,

a história e o poder

A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento. As leis de um movimento qualquer só são inteligíveis ao homem quando lhe é dado examinar separadamente as unidades que o compõem. A verdade porém é que é desta divisão arbitrária do movimento ininterrupto em unidades isoladas que resulta ao mesmo tempo a maior parte dos erros humanos. (...). No que diz respeito ao estudo das leis do movimento histórico, a mesma coisa acontece. O movimento da Humanidade, consequência de inúmeras vontades humanas parcelares, não sofre interrupções. A finalidade da História é a compreensão das leis deste movimento. (...). Toda a conclusão histórica se desfaz em pó, sem deixar rasto atrás de si, sob a pressão de qualquer ínfimo esforço crítico, desde que esta crítica eleja como medida de observação uma unidade maior ou mais pequena, coisa a que tem inteiro direito, visto ser sempre arbitrária a unidade histórica. (...). No estudo das leis da história é o objeto das nossas observações que precisa de ser modificado, É preciso deixar em paz os reis, os ministros e os generais e procurarem-se os elementos homogêneos e infinitesimais que dirigem as massas.

E sem que disso tivesse a iniciativa, o que ele realmente não queria realizava-se, não dando ordens senão por pensar que esperavam que ele as desse. De novo se deixou mergulhar nesse mundo fictício, povoado de visões de grandeza, e de novo, como um cavalo que, movendo uma nora, julga realizar uma tarefa útil para si, cumpria, docilmente, o cruel, doloroso, inumano e penoso papel para que estava predestinado.

o fato de estes soldados terem chacinado o seu semelhante não veio a produzir-se por vontade de Napoleão, mas deu-se, sem sua intervenção, graças à vontade dessas centenas de milhares de homens que intervieram no acontecimento. Bonaparte teve apenas a ilusão de que tudo era obra de sua vontade.

Os mais belos e mais profundos planos parecem sempre maus e os sábios estrategos criticam-nos com um ar proficiente sempre que acontece não terem levado à vitória; pelo contrário, parecem excelentes as mais contestáveis disposições, e os autores mais sérios não se cansam de lhes louvar os méritos, enchendo sobre eles volumes e volumes, desde que levaram à vitória.

Embora o príncipe André não soubesse explicar como nem por quê, o certo é que voltou para o seu regimento, depois desta conversa, absolutamente descansado quanto à marcha geral da guerra e confiante na pessoa que orientava superiormente as operações. Quanto mais via a ausência de personalidade naquele velho, cuja única arma era, por assim dizer, a experiência, resíduo das paixões, e que, em lugar da inteligência que sabe associar os fatos e tirar deles conclusões, apenas tinha a capacidade de contemplar tranquilamente a marcha dos acontecimentos, tanto mais se persuadia de que, tudo havia de acontecer pelo melhor. (...) “Nada trará de seu, não inventará nem empreenderá coisa algumaâ€, dizia de si para consigo, “mas ouvirá e lembrar-se-á de tudo, tudo colocará no seu lugar, não impedirá nada de útil, não consentirá nada de prejudicial. Compreende que há qualquer coisa de mais forte e de mais poderoso que a sua vontade pessoal: a marcha inevitável dos acontecimentos.

quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade,

Como falar em ciência numa matéria em que, como sucede com todas as coisas da vida prática, nada pode ser previsto antecipadamente e tudo depende de circunstâncias imponderáveis cuja importância surge de um momento para o outro, sem que ninguém saiba quando chegará a sua hora?

É muito possível que para que o acontecimento se produzisse tivesse sido preciso o encontro de todas estas causas, de milhares de causas, o que só quer dizer não haver causas exclusivas e que as coisas acontecem porque têm de acontecer. (...). Os atos de Napoleão e de Alexandre, cuja palavra, na aparência, só por si podia impedir ou desencadear os acontecimentos, eram tão pouco livres e arbitrários como os do simples soldado destinado pela sorte ou o recrutamento a tomar parte na campanha. (...). Nos fatos históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no fundo, de etiquetas para designar o acontecimento.

Temos de nos bater até à última gota de sangue - disse o coronel, deixando cair a mão em cima da mesa - e morrer pelo nosso imperador. E assim deve ser. Mas nada de raciocínios, raciocinar o menos possível.

E o primeiro regimento soltou um “Hurra!â€, um “hurra†tão ensurdecedor, tão alegre e prolongado que os próprios homens pareceram assustados com o número e o poder que representavam.

Que feliz Rostov se sentiria naquele momento se pudesse morrer pelo seu soberano...

Bóris compreendeu naquele momento o que, de resto, já presumia: que no exército, acima da disciplina e da subordinação inscritas nos códigos e ensinadas nos regimentos, coisa que ele tão bem conhecia, havia uma outra hierarquia mais sutil que obrigava aquele general de face rubicunda a aguardar respeitosamente e numa atitude militar que se dignassem ouvi-lo, desde que um príncipe André, simples capitão, a seu belo prazer, resolvesse conversar com o alferes Drubetskoi. E Bóris, mais do que nunca, a si próprio prometeu, de futuro, obedecer não aos regulamentos, mas às leis desta hierarquia não prevista.

Havia-se iniciado inteiramente naquela disciplina não regulamentada que tanto lhe agradara em Olmutz e de harmonia com a qual um alferes podia ocupar uma posição incomparavelmente muito mais elevada que a de um general, e segundo a qual, para se triunfar na carreira, não havia necessidade de esforço, de trabalho, de coragem, ou de perseverança, mas simplesmente de um talento especial para tratar com os distribuidores de recompensas.

Não pensava senão na alegria de ir ver de perto o imperador. Sentia que a presença dele só por si o compensaria bem do dia que perdera. Tomava-o uma felicidade idêntica à do apaixonado que por muito tempo esperou a mulher amada. (...) nos memoráveis dias que precederam a batalha de Austerlitz: noventa mil homens estavam igualmente apaixonados, embora não no mesmo grau, pelo czar e pela glória dos exércitos russos.

Parecia um cavalo atrelado a uma carroça que desliza por uma ladeira abaixo. Se era ele quem puxava o veículo ou se o veículo o arrastava, eis o que ele ignorava; mas o certo é que lá ia em marcha acelerada,

Será legítimo, para dar satisfação às ideias particulares de simples cortesãos, arriscar a vida de dezenas de milhares de homens, e a minha também?

A nossa obrigação é cumprir o nosso dever, bater-mo-nos, não pensar, e é tudo.

umas frases boas

só havia confusão e ruínas, que ninguém tinha culpa nem ninguém tinha razão,

E eis como algumas dezenas de milhares de homens dos mais diversos uniformes jaziam mortos, à mistura, naqueles campos e pradarias, propriedade de um tal Sr. Davydov e dos mujiques da coroa, campos e pradarias onde, durante centenas de anos, os habitantes de Borodino, Gorki, Chevardino e Semionovskoie, todas as estações, invariavelmente, procediam às suas colheitas e levavam os seus rebanhos a pastar.

E por que será que me custa tanto deixar esta vida? Há de fato nela qualquer coisa que eu não compreendia e que continuo sem compreender.

O nosso corpo é uma máquina de viver, eis tudo.

durante os últimos tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas demais. Não é bom conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal...

A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível necessidade.

“Talvez morram amanhã mesmo; como podem eles pensar noutra coisa que não seja a morte?â€

Conselheiros não faltam, mas homens a valer são raros.

“Já não existe! Já não existe! Já não está no lugar em que estava, já não é senão uma coisa desconhecida e horrível, um mistério terrível que me gela o sangue nas veias e me obriga a fugir!â€

Cada homem, com efeito, tem sua constituição particular e traz consigo a sua doença especial, uma doença só dele, nova, complicadíssima, desconhecida da medicina, uma doença que não é dos pulmões, nem do fígado, nem da pele, nem do coração, nem dos nervos, etc., não está descrita nos livros, mas é produto de inumeráveis combinações produzidas pela alteração dos órgãos. Esta ideia simplíssima não podia vir à cabeça dos médicos (...). Eram úteis, indispensáveis, inevitáveis pelo fato de darem satisfação às necessidades morais da doente e daqueles que lhe queriam, e é essa a razão por que há e sempre haverá curandeiros, charlatães, homeopatas e alopatas. Davam satisfação aos desejos, perenes no homem, de consolação, à avidez de simpatia que há nele, à necessidade de que se ocupem dele sempre que sofre.

Todos os estroinas, tanto os homens-Madalenas como as Madalenas-mulheres, vivem com a secreta e ingênua convicção de serem perfeitamente inocentes, persuadidos de que toda a gente está disposta a perdoar-lhes. “Muito lhe será perdoado pelo muito que amou; muito lhe será perdoado pelo muito que se divertiu.â€

enquanto os nossos olhos estão abertos para algures têm de olhar,

Não quero outra vida, e não posso desejar vida diferente, porque não conheço senão esta

ridículo, comovido e estúpido, coisa corrente entre os namorados

Bem sei que vais orar a Deus. Reza, se é essa a tua vontade, mas farias melhor se pensasses.

Neste estreito dique de Augezd, onde, durante tantos anos, o velho moleiro de barrete de algodão tranquilamente pescara à linha, enquanto o neto, de mangas arregaçadas, remexia num regador buliçosos peixes de prata; neste dique, onde, durante tantos anos, tinham rodado pacíficas carroças carregadas de trigo, guiadas por bons morávios de barrete de pele e vestes azuis, para depois voltarem a passar, brancos de farinha, com os seus alvos carregamentos, neste mesmo dique homens comprimiam-se, no meio das carroças e dos canhões, por entre rodas e cavalos, e, de caras desfiguradas pelo terror, pisavam-se entre si, caminhavam por cima de cadáveres e de moribundos, matavam e passavam, para acabarem, mortos também, alguns passos mais adiante.

que ilusão a tua ao pensares que a medicina já curou alguém! Que tem morto muita gente é um fato!

Estou vivo, e a culpa não é minha, por isso é bom que continue a viver o melhor que puder

O senhor propõe novas leis militares? Há muitas leis, leis antigas, e muito pouca gente que as aplique. Hoje em dia todos têm a mania de fazer leis. É mais fácil escrever do que agir.