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Daniel Galera



LITERATURA | RESENHA
barba ensopada de sangue
No livro malandrinho de Daniel Galera, um cowboy aquático investiga um crime do passado e os segredos de uma cidade e da própria família


5 agosto 2015 | comente


Um cristo moderno, descrente e sem nome, vidente e amnésico, percorre nadando, correndo e pedalando a sua odisseia para desvendar um crime de 40 anos atrás, enquanto namora belas com nome de flor e enfrenta uma cidade hostil, a mãe megera, o irmão judas, a amada infiel, ladrões de cachorro, o mar, o inverno e um morto-vivo. 'Barba ensopada de sangue', de Daniel Galera, tem tudo isso, e tem ainda tesouros enterrados, fantasmas, suicídio, serial killer, eleição, brigas de faca e de soco, budismo, pôquer de fraldas, alívio cômico, baleias, Gian e Giovani e participação especial de Wittgenstein (o filósofo). E tem conteúdo, além do mais.

O livro tem um jeitão de best-seller, é todo feito de cenas, os diálogos são poucos e curtos, as digressões moderadas, há um ritmo que deve agradar a maioria dos leitores, que gostam de narrativas movimentadas com começo, meio e fim. Mas Daniel Galera não é amador e não está para brincadeira. A obra tem uma segunda camada, e talvez uma terceira, uma quarta, para quem tiver interesse em desenterrar tesouros. Tem começo, meio e fim, mas para quem olhar com cuidado tem mais de um começo, e talvez o fim seja o meio, talvez seja um recomeço. Por trás da aparente simplicidade do primeiro plano das cenas, que fluem em tom cinematográfico, há um vasto contracampo de símbolos e pistas, muitas delas falsas. E, para quem se der ao trabalho, há muito o que ler nas entrelinhas. É um livro malandrinho. Tenho a impressão de que Galera nos dá a resposta certa para a pergunta errada.


quem narra?

O primeiro mistério de BES (vou encurtar assim o nome do livro, daqui por diante) é saber quem está narrando. De todos os personagens de um livro, o mais importante é sempre o narrador, esse ser ficcional que o autor cria para nos contar a história. Dependendo de quem é o narrador, sabemos se podemos confiar mais ou menos nele. Embora nunca seja o caso de confiar plenamente: narradores são mentirosos por excelência. Afinal, trata-se de ficção.

Neste BES, o primeiro capítulo é narrado em primeira pessoa por um jovem aspirante a cineasta, o Personagem-Sem-Nome 3, que é sobrinho do protagonista, o Personagem-Sem-Nome 2, um professor-triatleta-salva-vidas que acaba de morrer. (Sim, Galera começa matando o herói; como eu disse, ele não é amador). Mas do segundo capítulo em diante há alguém narrando, e pode ser ou não o cineasta. Mais provavelmente não é. Também não parece ser o próprio protagonista. A narrativa é em terceira pessoa, mas o narrador não é onisciente. Ou é, em parte: temos acesso aos pensamentos e sentimentos do Sem-Nome 2, mas não dos outros personagens[1]. O narrador acompanha o protagonista à moda de uma câmera de cinema, o foco está sempre nele. Mas o narrador não se apresenta. Tenho minhas suspeitas sobre quem poderia ser, mas não posso provar[2].

os sem-nome

Um segundo mistério é este: porque o protagonista não tem nome? Aliás, porque três personagens não têm nome?

Há o Sem-Nome 1, o avô misterioso assassinado que virou mito local. É referido por todos como Gaudério, mas gaudério não é nome, é um apelido gauchesco, designa qualquer gaúcho meio andarilho, meio valentão, meio perigoso[3]. De certo modo também o neto, o atleta, é um gaudério.

O segundo Sem-Nome é o personagem central, e protagonistas sem nome são uma figura recorrente nas narrativas, especialmente nas de tipo heroico[4], desde a Odisseia, onde Ulisses, a certa altura, não tem nome[5].

Penso que não nominar os protagonistas (o avô é tão importante no enredo quanto o triatleta, ou mais) serve para várias finalidades literárias. Primeiro, ao omitir o nome do(s) herói(s), o autor se filia a uma certa tradição e dá uma pista sobre o que esperar do livro: uma história de andarilho solitário, durão e calado, que vai enfrentar duelos e se dar bem no final. Falta saber o que é se dar bem, e o que é um final, para Daniel Galera.

Outra função literária do anonimato é negar à cidade hostil, e ao leitor, poder sobre o personagem: um nome é uma espécie de chave mágica, saber o nome de algo é adquirir poder sobre esse algo[6]. Metaforicamente conhecer o nome é identificar, ou seja, é conhecer a identidade de algo. Parece que o autor não quer revelar a verdadeira identidade desses personagens, ou eles é que não querem revelar-se por inteiro. Ou, por outra, talvez não tenham nome porque ainda não conhecem quem verdadeiramente são, não têm ainda uma verdadeira identidade para anunciar.

Outra finalidade literária desse anonimato pode ser criar uma conexão entre os personagens sem-nome, um vínculo: são dois gaúchos misantropos, de poucos amigos e poucas palavras, com uma ética firme mas um tanto cínica, de espírito andarilho, intrusos indesejados, valentes na briga, teimosos, que ganham a mesma reputação lendária de imortais, mágicos e assustadores. Os dois são figuras crísticas (mais sobre isso adiante). Têm tantas coisas em comum, que têm mais essa, a falta do nome[12]. Se juntam numa categoria à parte do resto da humanidade, os nominados.

De se notar, também, que a falta de nome enlaça aos dois um possível terceiro protagonista, que levaria a um recomeço da saga: o jovem cineasta do começo também não tem nome, e também chega como intruso na cidade hostil, fazendo perguntas proibidas sobre pessoas que os moradores querem esquecer. Parece um reinício do ciclo, porque o Sem-Nome 3 repete a desmedida[15] do finado tio. Talvez, então, o que deveria ser fim da história, mas está no começo do livro, seja só o meio da narrativa, ou um ponto de virada numa história que não termina. Daniel Galera é esperto, mas não faz alarde disso.

e os que têm nome

O personagem é como um filho para o escritor. Escritores não batizam seus personagens à toa, pensam muito antes de fazê-lo. Logo, os nomes podem significar algo e dar pistas sobre o papel de cada personagem[7].

Acho muito interessante que a lenda de um personagem de molde crístico (vide adiante o que isso quer dizer), que busca um avô mítico-mágico, se passe num lugar chamado São Joaquim[8]. Ainda mais quando a cidade é um personagem importante da trama: da maneira como Galera conta, a cidade inteira, como se fosse um ser só, uma vontade unificada, se coloca em conflito com os dois Sem-Nome. É a cidade que assassina o avô, e depois hostiliza o neto, primeiro de forma velada, depois de forma violenta. São Joaquim, além de santo, isto é, personagem mítico-mágico, é avô de Jesus. Há uma conexão do nome do personagem-cidade com os outros protagonistas, se insinuando na teia das palavras: avô, Cristo, mito.

Notei, também, que depois de terminar sua jornada pelo inferno e purgatório o herói alquebrado acha o socorro e abrigo em São José (cap. 12), nome de quem não é pai de sangue, mas acolhe o filho crístico e dele cuida como se pai fosse.

Também desconfio, sempre que um autor batiza personagens com nomes mítico-lendários, como Hélio (do grego arcaico, nome do deus-sol da mitologia), que a intenção é enfatizar o caráter mitológico-universal-atemporal da história que está contando. Neste caso, como veremos depois, a história tem todos os ingredientes desse tempero arcaico-legendário, e colocar um sol grego na lista de personagens não é impróprio[9].

Viviane, que vem do latim, quer dizer "viva", mas tem uma implicação literário-mitológica porque é o nome da Dama do Lago do ciclo arturiano[10]. Remete ao que disse acima, sobre autores que dão aos seus personagens nomes tirados de lendas ancestrais ou universais. Acho interessante o paralelo e o contraste entre a fada que se eleva das águas para conceder o amuleto salvador ao rei Artur e a fada-bruxa que sai das águas para estragar a vida do protagonista de BES (num sonho recorrente que ele tem desde a adolescência, v. cap.12). Lá no final, no cap. 13, ficamos sabendo que na primeira vez em que o protagonista e sua Viviane estiveram juntos numa praia ele a viu sair das águas escorrendo sangue, o que visto em retrospectiva, e em paralelo com o significado do nome, era um mau agouro[11].

Sobre esse Dante que rouba a Beatriz do irmão cabe lembrar só isso: é outro nome com cor e cheiro de lenda imortal-universal, enfatizando a intenção do livro de se alinhar com os outros livros honestos que sabem estar apenas recontando a única história que há para contar[13].

Interessante notar que os dois barcos que o protagonista encontra defronte sua nova casa, constantemente e desde que chegou ali, são o Poeta e o Lendário. De novo as coincidências cintilam na teia das palavras, porque evocam o avô morto, que era um pescador (submarino) notável, e era também poeta[16] que tocando violão enlouquecia a mulherada, e que morreu chacinado por uma multidão e sumiu no mar, mas todos creem que é imortal; enquanto entrava nas águas, depois do martírio, falava coisas em línguas que nem existem[17]. Um poeta lendário. Difícil pensar em tudo isso não lembrar de um outro poeta lendário, Orfeu, que encantava gente e natureza com seu canto, tocava um instrumento de cordas, era pescador[18], foi chacinado por uma multidão, atirado no mar, onde afundou gritando o nome da amada (em grego; uma língua que para os pescadores de Garopaba provavelmente "nem existe"), mas não morreu porque é imortal. Há aqui uma analogia entre os dois poetas lendários, avô gaudério e Orfeu, uma coincidência deliciosa, dificilmente casual.

Por fim, para encerrar esse assunto de nomes que já vai longe, achei genial que o protagonista, depois de concluir sua jornada heroica, passar pelo inferno e vencer os obstáculos, tenha ido residir na "Volta do Ambrósio" (v. o capítulo sem número que está antes da primeira parte, aquele escrito pelo cineasta). "Volta" parece um lugar ideal para morada de alguém que esteve no inferno, passou pela morte (simbólica, neste caso) e voltou, e, segundo a lenda criada pelo povo de Garopaba, é imortal, ou seja, sempre volta. E Ambrósio quer dizer imortal[14]. Galera é espertinho e espalha easter eggs pelo cenário o tempo todo[20].

figuras crísticas

Figuras com características crísticas são recorrentes na literatura. Não são nem têm de ser santos, nem mesmo bons exemplos, e alguns nem mesmo são "do bem". Para ser uma figura crística basta que o personagem encarne algumas das características essenciais do modelo[24]: ter um nascimento ou origem inexplicável, mágica ou misteriosa, ser designado por alguma marca, sinal ou profecia como o escolhido-esperado-prometido, operar milagres, salvar ou curar pessoas, ser um sábio anticonformista[23], ter seguidores, ensinar, em especial uma mensagem revolucionária, ser rejeitado e perseguido, especialmente por seu próprio povo, sacrificar-se por outrem, voltar da morte, e por aí vai[21]. Idealmente um Cristo literário é um personagem que se submete voluntariamente a algum sacrifício por amor, para redimir ou redimir-se; ou alguém com uma história ligada ao trinômio encarnação-morte-ressurgimento.

No BES, os dois protagonistas têm em comum vários signos do herói crístico. Quanto ao avô, é um herói assinalado (perdeu parte de dois dedos numa briga), pescador, perseguido e martirizado pela gente da comunidade em que vive, que voltou da morte e é considerado imortal, além de ser relacionado com Orfeu (outra figura crística, como vimos). O neto compartilha com o avô a fama de mágico e imortal, também foi perseguido e hostilizado pelo povo da cidade, passou por uma morte simbólica (largaram-no na praia parecendo morto, e ele se reergueu para continuar a briga, no cap. 12), depois morreu de verdade para salvar outra pessoa, era um mestre e tinha discípulos, era um salvador profissional (salva-vidas), reanimava (isto é, metaforicamente, ressuscitava) pessoas que livrava da morte (aqueles que salvava do afogamento), sofreu um ferimento do lado, peregrinou pelo deserto (no cap. 11 inteiro; literariamente qualquer solidão é um deserto, mesmo sem areia), ali foi tentado (lhe ofereceram comida, cigarro, abrigo, carona, ou seja, chances de largar a jornada de sofrimento e voltar ao conforto) e ele resistiu à tentação, depois operou milagres (salvar-se a nado no cap. 11, e vencer o duelo do cap. 12). A jornada do Sem-Nome 2 ocorre toda no ano do seu 33º aniversário (cap. 2), e Jesus morreu com essa idade.

Os dois, ademais, viraram lenda e mito. Para confirmar ainda mais a vocação crística desses protagonistas pode-se notar que estão ligados ao trinômio encarnação-morte-ressurgimento, porque, para todos os moradores da cidade, pelo menos à primeira vista, o Sem-Nome 2 é o Sem-Nome 1 voltando dos mortos.

Por que isso importa, e que função tem uma figura crística na ficção? A figura crística é um tipo muito especial de herói. O herói (veremos adiante) é alguém que excede as medidas do "normal", se envolve em aventuras e conflitos, é testado, e volta da jornada enriquecido. Um herói crístico é alguém que faz isso por motivo altruísta. A função de toda narrativa heroica é fornecer catarse: a purificação da alma por meio da descarga emocional provocada por um drama; suscitando a compaixão e o terror, a tragédia purga essas emoções. Participando da vida do herói, nos emocionamos "por procuração" e vivenciamos sem riscos a iniciação a certos mistérios[22]. Quando o herói é do modelo crístico, a catarse é focalizada em sentimentos correlatos: o personagem nos inicia nos mistérios da redenção, do renascimento ou do auto-sacrifício[42].

a jornada do herói

Mencionei antes que a literatura geralmente conta a mesma e única história que há para contar: a história do homem no mundo, enfrentando a vida e seus conflitos. Na prática, o que as narrativas contam, se entendidas simbolicamente, é a história de nós mesmos. É por isso que as lemos[13]. Provavelmente você não matou seu pai nem casou com sua mãe, mas a velha tragédia de Édipo é sobre você, porque fala de alguém que peregrina pela vida sem saber bem quem é, sem controle do próprio destino, precisando lutar por sobrevivência e objetivos, incapaz de consertar o passado.

Essa única história é recontada de modos diferentes, e por isso talvez não pareça sempre a mesma. Esses modos, porém, também estão limitados a uma lista finita de modelos. O mais usado e conhecido é o da jornada do herói, um padrão multimilenar que serviu para Homero e para Walt Disney[25] e que irmana de certa forma Aquiles e Harry Potter. Aristóteles já havia descrito a maior parte desse padrão: o protagonista sai de seu mundo ou estado comum ao praticar uma desmedida[15] (algo que o homem "comum" não faria), mostrando orgulho ou pretensão de ser melhor que os demais (hybris) o que desperta ciúme[28] (dos deuses, da sociedade, do antagonista, etc.); isso o põe em conflito com algo ou alguém[13]; ele faz uma jornada, tem de vencer provas ou lutas, atravessa um inferno real ou metafórico[26], e volta da jornada transformado, trazendo algum item mágico (real ou simbolicamente[27]).

Todas essas etapas aparecem nas jornadas dos dois protagonistas. Ambos viajam, isto é, se deslocam fisicamente de um lugar ao outro (a jornada do herói não precisa ser, mas geralmente é, uma viagem física, e por isso a viagem é um tema recorrente na ficção[29]). Eles se intrometem onde não são bem-vindos, e essa é sua desmedida. O avô, porque era gaúcho, bonitão e encrenqueiro, desperta a hostilidade e depois o medo da cidade. O neto também, porque busca uma verdade que é tabu e quer desenterrar um fantasma que a cidade quer esquecer. Uma pessoa "comum" teria abandonado a cachorra, ou tentado impedir o suicídio do pai, e nem teria pensado em investigar um crime de 40 anos atrás, ou teria se intimidado com a hostilidade franca de toda a cidade, a falta de pistas, as muitas dificuldades. O triatleta ultrapassa a medida do homem comum e se obstina: quanto mais cresce a oposição, mais ele se empenha. Isso o precipita numa sucessão de conflitos, que levam inclusive a confrontos físicos e o obrigam a façanhas de ação típicas de herói. Toda a temporada na cidade é um purgatório, mas ao fim ele mergulha num inferno[26], numa peregrinação (o tema da viagem de novo) pelo deserto, com fome e frio, nos limites das forças físicas e da vontade, passa pela morte simbólica[33] e encontra o seu graal: é um herói cuja meta é a verdade, e ele vai até ela à custa de sacrifício e perigo. E retorna modificado: magro, fraco, doente, ferido, de mãos vazias, mas trazendo a verdade que procurava. O confronto final, a boss fight que toda história de herói deve ter, é em grande estilo: ele tem de enfrentar o único adversário que realmente teme, a amada imortal.

Os elementos mitológicos e simbólicos da jornada do herói são muitos, aqui. É fácil perceber que um herói que não conhece o próprio rosto, e se obstina na busca de um sósia ancestral, é alguém em busca da própria identidade, como Édipo. Um herói que viaja enfrentando perigos para no final encontrar uma amada é um Ulisses. Um herói solitário e sem nome, caladão e bom de briga, e de ética positiva, mesmo que cavalgue uma bicicleta é um cowboy, especialmente se duela e no final fica com a prostituta[30]. O tema que unifica todos os western é o oeste, o wild west (oeste selvagem), o far west (oeste distante, de onde vem a palavra faroeste), o sertão, o lugar hostil onde é preciso ser forte. E o sertão, como Guimarães Rosa ensinou[31], "é do tamanho do mundo", "está em toda a parte", "é onde manda quem é forte, com as astúcias"; "o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem"; "o sertão é uma espera enorme", e por isso "o senhor faça o que queira ou o que não queira - o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão"; o sertão estava na Grécia há 25 séculos, no Texas em 1850 e na Garopaba de 2008, porque é atemporal: "sertão é quando menos se espera", pois "os gerais desentendem de tempo". E tudo isso porque, na verdade, "sertão é dentro da gente".

um sentido?

É sempre frustrante, ou enganoso, tentar atribuir um sentido a uma obra artística, porque a fruição da obra de arte é um diálogo entre a obra e o fruidor, que leva para a relação seus próprios conteúdos, seu próprio acervo de questões existenciais e referências culturais. Como esse acervo é individual, único, cada leitura é também única. Dois leitores podem concordar sobre muita coisa, mas dificilmente sobre tudo que viram na obra. As respostas que a obra fornece dependem das perguntas que o leitor é capaz de fazer. Quem pergunta menos, recebe menos respostas. Quem tem mais experiência em fazer essas perguntas, e dispõe de um acervo maior de paradigmas (termos para comparação, obras previamente lidas), tem mais condições de entender as respostas. O sentido da obra, se existe, é tão único quanto cada leitor. Se existe um sentido dessa obra para Daniel Galera, provavelmente só ele saberá.

Mas pelo menos uma alegria é assegurada, aqui: o autor não tenta "empurrar" uma mensagem única e pré-moldada ao leitor, como alguns fazem. Nada mais desagradável na experiência do leitor do que pegar um livro procurando literatura e encontrar propaganda, panfletagem. Daniel Galera não caiu nessa armadilha: seu BES é ambíguo, cheio de pistas que podem ou não ser falsas, admite discussão e divergência. É uma das qualidades do livro.

Na busca de qual seria, especificamente para mim, o sentido desta obra, concluo socraticamente que nada sei. Tenho alguns palpites esperando a montagem do quebra-cabeças.

Anotei, primeiro, ideias que vieram das constantes provocações do autor em relação ao budismo, que ele apresenta como uma das possíveis pistas falsas da obra (aparentemente a jornada budista do protagonista termina frustrada no cap.10, e como o avô está vivo, a hipótese de reencarnação é descartada). Para mim o budismo é uma pista verdadeira, e talvez o seja só porque eu resolvi segui-la. A diferença entre a pista falsa e a verdadeira, na interpretação de uma obra artística, pode ser essa: a pista verdadeira é a que você segue até o fim. Neste caso, o que parece é que o protagonista se descobre mais budista que os budistas que pretendiam guiá-lo. A conclusão do cap. 10 é esta: para chegar ao seu nirvana ele não precisa nem pode seguir os caminhos que servem para os outros. Tem o seu próprio caminho. É nadando, correndo e pedalando que ele se liberta da ilusão do eu e se dissolve no todo (como anotado noutra parte desta resenha), numa forma especial de se relacionar com o mundo (cap. 5). Aos próprios amigos budistas ele dá exemplo de desapego dos bens materiais: tudo que ele quer é morar perto do mar, e nadar. Por isso entra em conflito com a visão de mundo da mãe, do irmão e da cunhada. Por isso não triunfa no esporte: o ex-patrão comenta que ele não tem espírito competitivo, e faz tempo melhor no treino que na prova (cap. 3), o que confirma uma visão mais espiritualizada da vida do que o próprio protagonista suspeita ter, uma visão zen: ele não corre para vencer, corre para correr, e só. Como disse Watts (2001), "Zen não confunde espiritualidade com pensar em Deus enquanto se descasca batatas. A espiritualidade Zen é apenas descascar batatas". A atitude do protagonista não se enquadra na disciplina do mosteiro, porque ele não necessita de oração, meditação, lamas e estátuas: lhe basta, para a experiência mística, "ficar sozinho e em silêncio com uma parede" (cap. 10). Penso, então, que uma das buscas do personagem foi bem sucedida aí. Ele não aprendeu algo novo, mas descobriu que já sabia o que havia para saber[34].

Também me parece uma pista válida acerca do possível sentido da obra o fato de o protagonista desejar, a todo custo, viver na divisa entre a terra e a água, o mais perto da água que for possível e, por extensão, o mais longe que puder da terra. Essa meta simboliza talvez a tentativa de se afastar do modo de vida "normal" imposto pela coletividade, representada pela mundovisão da mãe, de Dante, de Viviane, concentrada em sucesso, riqueza, conforto, erudição, realização profissional e social, ou seja, todos valores ligados ao elemento terra, que diz respeito aos aspectos materiais/materialistas da existência[36], ao apego, à mundanidade, à sensação, ao ventre, ao bem estar material, ao ouro (o naipe de ouros é que representa o elemento terra no tarô). O personagem quer ficar o mais longe possível desse modo de vida representado pelo elemento terra, e isso implica em ficar o mais perto possível, quase dentro mesmo, da água, elemento que representa a sensibilidade e a emotividade, a emoção, o coração, a alma e as coisas da alma[36].

Essa ideia é reforçada pelo paralelo, traçado de forma epifânica e sacramental, no encontro com a baleia (no cap. 10). Interessante notar que essa cena é narrada rapidamente, em poucas palavras. O estilo de Galera fica claro ao longo de todo o livro: as cenas onde nada ou quase nada acontece são narradas lentamente, com abundância de detalhes e descrições (da paisagem externa e também da paisagem interna do personagem, seus pensamentos e sentimentos). Já as cenas de ação, onde os fatos decisivos acontecem, são curtas, rápidas, narradas em andamento veloz, com poucas palavras, em ritmo cinematográfico. O encontro com a baleia no cap. 10 é narrado assim. Logo, embora pareça uma cena contemplativa, do ponto de vista íntimo do personagem é uma cena de ação, uma cena onde coisas importantes acontecem. O autor não explica quais seriam: é uma epifania, coisa que não se explica com palavras. As explicações de Jasmim no cap. 8 fornecem, todavia, uma hipótese: a do paralelismo entre o protagonista e as baleias, a identificação dele com elas. O herói sente a necessidade de viver no ponto mais extremo da terra, no fim da terra, porque não pode viver diretamente no mar, como parece que gostaria. As baleias, explica a psicóloga, sentem nostalgia da terra, de onde saíram, à qual se sentem pertencentes, e por isso necessitam ficar no ponto extremo do elemento água, o mais perto possível da terra, tão perto que às vezes encalham. O herói, como a baleia, sente-se fora do seu elemento. E ambos repetem um padrão de comportamento que Jasmim aponta: voltar ao lugar do sofrimento, como se não tivessem memória. As baleias retornam à costa onde seus ancestrais eram caçados, e o herói retorna a essa mesma costa, onde seu ancestral também foi imolado. E assim como a baleia encalha e morre por querer ficar perto de um mundo onde não pode viver, o herói morre afogado, isto é, "encalhado" na água. O que lembra outro paralelismo embutido no texto: o herói nasceu e morreu sufocando. Nasceu com anóxia perinatal, isto é, afogando-se ainda no útero, e morreu afogado no mar, que Jasmim descreve no cap. 10 como um "útero ao contrário". Essa coincidência de começo e fim enfatiza o caráter cíclico do livro (já mencionado antes).

A profissão do personagem é tão relevante quanto o nome, ou a falta dele. Aqui, além de ser um mestre e um salvador, ele é um triatleta. Corre, nada e pedala melhor que o humano normal, seus superpoderes são esses. E é quando está praticando esse seu ritual, essa sua forma especial de relacionar-se com o mundo, que ele se realiza espiritualmente. É interessante isso, o fato de alguém ter nascido para realizar-se misticamente no triatlo. Porque o triatlo pode representar simbolicamente uma harmonização das forças universais, uma totalização do tipo místico. Nadar é integrar-se com a água, correr é palmilhar a terra, e pedalar é como correr sem por os pés no chão, ou seja, correr no ar. Praticando o triatlo o protagonista celebra três dos elementos, funde-se neles. O quarto elemento, o fogo, que representa o espírito, a intuição, a iniciação, a vontade[36], é simbolizado na relação pelo próprio triatleta. O protagonista tem todas as características de alguém ligado ao elemento fogo: intuitivo, iniciado (capaz de captar subliminarmente verdades de ordem mística), forte na vontade.

Como o duelo com Viviane foi adiado por anos, até a cena final do livro, só posso concluir que é uma cena importante para o entendimento da obra. E se trata de um duelo ideológico: ela quer perdão, redenção, justificação; ele afirma que o perdão seria uma covardia. Sabia que seria abandonado pela amada, e nada fez para impedir isso, e por isso não pode perdoá-la: ele, que tem vislumbres do futuro, é fatalista, e crê que nenhum dos envolvidos podia agir de outro modo. Mas crê, também, que cada um é responsável pelo que fez, ainda que não tivesse escolha. Wittgenstein é mencionado, mas outro filósofo, Spinoza, é que comparece na conversa. Há pouco espaço para o livre-arbítrio, na filosofia de Spinoza, que defende o determinismo. O espaço de liberdade se limita ao esforço para tornar-se "o capitão da própria alma e elevar-se acima da paixão por meio da razão". Dizia que todos agem por necessidade, mas virtuoso e livre é quem age entendendo sua natureza e sua necessidade; escravo é quem age movido por causas que não entende[35]. Ou seja, ao que parece a única liberdade do homem é a de entender como e porque é prisioneiro. Viviane quer perdão, redenção, quer negar sua natureza materialista que a levou a preferir Dante. O herói quer apenas compreender a própria natureza e a própria necessidade de ser quem é.

Penso, para concluir, que o Sem-Nome 2 encontrou a resposta que buscava. Não buscava achar uma pessoa, mas resolver um mistério. O mistério da morte do avô, que depois se converte no mistério do avô vivo, é o mistério da identidade do próprio herói. Ele buscou o seu modelo, aquele de quem pensava ser a cópia, a reencarnação, a repetição ou a continuação. E quando achou, quando se olhou naquele espelho, decidiu não mais seguir o modelo, decidiu ser ele mesmo. O avô respondeu às provas da jornada escolhendo a solidão, o ostracismo, a misantropia. O mundo o repeliu, e ele fugiu do mundo. O neto prefere viver no e para o mundo, constituir família, salvar gente e ensinar outros a fazer o mesmo. Vejo aí um engrandecimento, um herói que volta da jornada trazendo um amuleto mágico, que, no caso, está dentro dele mesmo: em vez do graal ou da espada mágica, ele traz do inferno a própria identidade. Não vem ao caso se o caminho que ele escolheu é "certo", se é melhor ou pior do que o escolhido pelo avô. O que mostra o crescimento da personagem é a escolha, é a assunção da responsabilidade de afastar-se do modelo, a aceitação do fato de ser si-mesmo[32].

e algo mais

Se esta fosse uma resenha profissional encerraria com uma frase de efeito. Como não é, termino confessando que este estudo é bem incompleto. Há várias linhas de investigação que não desenvolvi por falta de tempo e conhecimento. Deixo uma lista, para o leitor de espírito curioso.

Primeiro, a óbvia questão do personagem-ausente, figura bastante querida dos autores e críticos[38]. O avô, neste BES, é um ótimo personagem-ausente, daqueles que enche o livro e se impõe o tempo todo, embora não esteja fisicamente em cena[39].

Envergonha-me confessar que não aprofundei o estudo da conexão entre BES e o conto de Jorge Luis Borges, "O Sul". A conexão é afirmada categoricamente no cap. 1, num diálogo que deixa claro que ler esse conto é condição para compreender o livro. O conto está na coletânea "Artifícios" e também na coletânea "Ficções", da Editora Globo. Não me lembro dele, faz uns vinte anos que li; vou reler quando as perguntas de BES se tornarem insuportáveis[40].

Sei que deixei de prestar a devida atenção a muitas das pistas espalhadas por Daniel Galera. Não é significativo que no enredo que ele conta até a eleição fique inconclusa? De fato, embora a eleição e seus atores sejam apenas um detalhe na paisagem do livro, até esse detalhe se encerra sob o signo da indecisão. O que indica um certo caráter do livro, uma certa intenção do autor. Deve ser também significativo que os personagens construam suas vidas por cima de cadáveres (de baleias, no caso, a cidade inteira foi levantada em cima da morte de milhares delas). O protagonista fez sua morada diante de um cemitério de baleias, animais com quem se identifica. Também merecia mais atenção do que dei, numa história que parece cíclica, o fato de ela se desenrolar numa cidade que avança e recua como as ondas, que murcha e floresce com as estações, vibrando no verão e fenecendo no inverno. Uma cidade, ademais, que também tem vida cíclica: o avô chegou ali quando morria o ciclo econômico dos baleeiros, e o neto chega quando está findando o modo de vida dos pescadores artesanais. Por fim também merecia mais atenção o detalhe de a história toda caber dentro de um ano, sabendo-se como tendemos a identificar o início e o fim do ano com início e fim de ciclo (as resoluções de ano novo provam isso). A cachorra Beta, por fim, que tem um papel tão destacado no livro, merecia um espaço também no estudo[42].

A conversa entre o protagonista e Jasmim, no cap. 8, sobre a diferença entre mito e ídolo, não deve ser casual, também. O avô, enquanto era apenas uma história pitoresca e nebulosa da família, podia ser um mito. Quando o protagonista o converte em obsessão e persegue a todo custo o desvendamento desse modelo, transforma o avô em ídolo. Esqueceu-se da advertência da namorada, de que o mito é capaz de conter alguma verdade, mas o ídolo é necessariamente uma mentira.

Por falta de conhecimento deixei de opinar sobre a menção a Wittgenstein, que, todavia, não me parece casual. Ele foi o filósofo que tentou reduzir a filosofia à lógica, o mundo aos fatos, e a linguagem às proposições que enunciam fatos. Definiu aí o limite da linguagem e do mundo. Para ele qualquer proposição que não retrate fatos (por exemplo, um juízo de valor, ou uma afirmação metafísica) é sem sentido. Resumiu isso na frase célebre: “Do que não se pode falar deve-se calar”. Ou dito de outra forma: qualquer verdade última, se existe tal coisa, está tão além da prova que não podemos sequer falar a respeito. Pareceu-me - é uma opinião de leigo mal informado, ressalto - que o triatleta marombeiro entende mais de Wittgenstein que a ex-namorada, que estudou filosofia. Porque ela insiste em buscar verdades sobre as questões morais do antigo relacionamento, e ele se satisfaz em saber, ou crer, que foi assim porque "estava escrito", e ainda assim ambos são responsáveis pelo que houve. Ou seja, ela quer falar daquilo que não pode ser dito. Ele, à moda de Wittgenstein, prefere viver no nível dos puros fatos. Assim como Jasmim, que se entrega ao amor nascente com a condição de nunca falarem sobre isso, sobre o que sentem, porque "falar sobre as coisas avacalha tudo pra mim. Falar estraga. É só dar nome que morre" (cap. 8). A harmonia entre ela e o protagonista se estabelece porque concordam em não falar sobre o que não cabe nas palavras.

Discutindo o livro com amigos lembrei o quanto somos condicionados a prestar atenção no enredo, esquecendo a narrativa. O enredo é o conjunto de fatos que acontecem aos personagens, a história que o livro (ou filme) conta. A narrativa é o conjunto de palavras (ou imagens) que conta a história. Lendo um livro é fácil esquecer que ele é feito de palavras (aliás, se isso acontece é porque o autor é bom escritor). Mas uma leitura mais profunda, que presta atenção nas palavras, rende mais prazer e frutos. Como lembrou Prose[41], bom escritor é aquele que escolhe as palavras certas para contar a história. Qualquer um pode relatar por escrito os fatos que o Dom Quixote ou o Dom Casmurro contam (aliás, nem precisa, há resumos na internet). Mas quem o fizer não se converterá, por isso, noutro Cervantes, noutro Machado. O que prova que num livro não é o enredo, mas sim a narrativa, o que mais importa. A história é um barquinho que vai correndo, é fácil focar o barquinho e esquecer da água que o sustenta, que é a linguagem. É nessa água que é a linguagem, essa água-viva, água que queima (como aquela do cap. 7), que encontramos as surpresas, especialmente se prestamos atenção às coisas que se movem no fundo.

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Notas e comentários

[1]: Não sempre. Há dois trechos em que o narrador descreve fatos que o protagonista não viu (uma conversa entre a mãe e Dante no cap. 2, e outra entre donos de academia no cap. 3); e um, na 2ª parte do cap. 10, em que o narrador é onisciente mesmo, porque descreve fatos que ocorrem em toda a cidade, e sentimentos que não são do protagonista. A menos que não seja isso. Porque esse trecho se passa num daqueles momentos em que o protagonista, nadando, mergulha no mar e mergulha em si também, e se ausenta do próprio Eu para fundir-se com o mar e o mundo. Em mais de um trecho ele relata essa sensação, esse é o seu rito religioso, a sua forma de meditação: correr, ou pedalar, ou nadar, "até que a sensação constante de ser uma pessoa se dissolva naturalmente pelo esforço físico extremo e pela conversão de todo o seu pensamento em passadas, braçadas, pulmão, coração". Para ele nadar não é um esporte, "nadar é uma relação especial com o mundo" (cap. 5). No começo do cap. 4 ele já estava tão ligado à cidade que conseguia adivinhar o clima subconscientemente. Talvez no cap. 10 ele já consiga dissolver o eu na água e participar da mente coletiva da cidade, e por isso descreve o que acontece e o que se pensa lá longe.

[2]: O protagonista só conhece um escritor, e o conhece bem demais. Esse escritor também conhece bem o cineasta que foi a Garopaba fazer o levantamento dos fatos sobre a morte do Sem-Nome 2. Esse escritor jurou que nunca escreveria sobre o Sem-Nome 2 (cap. 5), mas na opinião do protagonista se trata de um sujeito sem ética que se apropria inescrupulosamente da vida dos outros para fazer ficção (cap. 13), e seria capaz de escrever até sobre uma tragédia pessoal de alguém querido (cap. 1). E, ademais, a única pessoa viva que poderia se constranger com a narrativa, a esta altura, já tinha autorizado o escritor a contar a história (cap. 5). Esse escritor tem nome de poeta, e de um capaz de descrever uma jornada que atravessa inferno, purgatório e paraíso (não necessariamente nessa ordem). Logo, acho que temos um suspeito.

Reconheço, porém, que não é impossível que o próprio Sem-Nome 2 seja o narrador. As pistas estariam no cap. 4 (onde ele faz um estranho questionamento a Bonobo, sobre se seria ético alguém publicar um livro que um morto deixou escrito; a conclusão é pela inocência de quem o fizesse) e nas últimas linhas do cap. 12, onde ele faz essa curiosa digressão acerca do seu sonho recorrente (que é uma alegoria da sua relação com Viviana): "Imaginou variações consecutivas dessa história por anos a fio. Em todas ele terminava sozinho. Nunca lhe ocorreu contá-la a alguém, escrevê-la, desenhá-la. Por que essa história? Por que uma história? De onde tinha surgido e onde tinha ficado guardada todo esse tempo?" Isso insinua que ele tem uma história, precisa contá-la, e ela ficará guardada muito tempo. É possível, então, embora não seja minha teoria preferida, que o Sem-Nome 2 tenha escrito sua própria história, e a deixado para o sobrinho cineasta encontras nas suas investigações.

[3]: Gaudério: Gaúcho de nascença, criado em galpão, o mais guapo da estância. Vem do castelhano, termo para homem sem rei e nem lei, pejorativo para ladrão de gado, andarilho, vagabundo. Pessoa que não tem ocupação séria e vive à custa dos outros, andando de casa em casa. Parasita, amigo de viver à custa alheia. Denominação dada ao antigo gaúcho, em sentido depreciativo. Vernáculo com origens no latim, gaudium, significando um sujeito alegre. É usado comumente para designar pessoas que gostam de divertir-se, irem a festas gauchescas e encararem suas vidas com tranquilidade e otimismo. Há até o verbo "gauderiar", que significa andar à toa, vagar. Fonte: aqui.

[4]: A famosa trilogia de westerns do diretor Sergio Leone ('Por um punhado de dólares', 'Por uns dólares a mais' e 'Três homens em conflito'), têm como protagonista um cowboy andarilho, valente, solitário, meio vagabundo, bom de briga, que fala pouco, que ajuda os outros, que se envolve em duelos de vida ou morte, ou seja, alguém com as mesmas características do protagonista e de seu avô. Em 'Era uma vez no Oeste' Leone retratou outro protagonista sem nome, com as mesmas características e mais uma, a de tocar um instrumento (como o avô misterioso do protagonista). O arquétipo do aventureiro sem nome, solitário, caladão, um tanto cínico e de bom coração fez carreira nos westerns, depois disso: 'Meu nome é ninguém', 'O estranho sem nome', 'O cavaleiro solitário' (nestes dois últimos o protagonista sem nome é além do mais um tanto sobrenatural, como no BES), 'El Mariachi'. Leone se inspirou no filme japonês 'Yojimbo', onde Toshiro Mifune fazia o protagonista, um ronin sem nome. Fonte: aqui.

[5]: Não é bem assim, na verdade. Ulisses, numa das suas artimanhas para escapar dos perigos, diz ao ciclope que seu nome é "Ninguém", o que acaba por salvar-lhe a vida e permite a única cena engraçada da Odisseia (não posso contar porque é engraçada; sou a favor de spoilers, mas não de contar o final das piadas).

[6]: A importância e o poder mágico do nome são destacados em muitas mitologias, incluindo a hebraica, a japonesa, a chinesa, a indiana, a egípcia, a maometana. Quase todas as religiões (especialmente o judaísmo, o budismo e o islamismo) dão especial importância ao poder do conhecimento do nome ou nomes de Deus, como fontes de poder elevadíssimo, ou supremo. As mitologias também enfatizam o poder mágico do nome das pessoas e coisas: nomear um ser equivale a adquirir poder sobre ele. Quando Adão recebeu o poder de dar nome aos animais recebeu com isso e por isso o poder sobre eles. No pensamento tradicional chinês o nome e a coisa são um só, o nome não só indica, mas constitui o ser, e a ordem do mundo depende da correta denominação das coisas. A mitologia egípcia crê no poder criador e coercitivo do nome, o nome é coisa viva, conhecer o nome proporciona poder sobre a pessoa[37]. Cabe lembrar dos vários personagens bíblicos que mudam de nome para mudar de vida, como Simão-Pedro, Saulo-Paulo, Jacó-Israel. Do ponto de vista da superstição, dizer o seu nome verdadeiro ao inimigo é ficar sob o jugo dele. Do ponto de vista epistemológico, poder nominar algo é condição para conhecê-lo: não vivemos nem pensamos fora da linguagem, e conhecer algo é situá-lo no território da linguagem, marcá-lo, rotulá-lo. Com um nome.

[7]: Carrero, 2015. Também Prose (2008) anota que a questão de como chamar seus personagens é uma escolha importante que um escritor de ficção precisa fazer: tem de escolher um na miríade de termos ou designações que poderiam ter estabelecido diferentes graus de distância psíquica e simpatia entre o leitor e o personagem.

[8]: São Joaquim de Garopaba era o nome primitivo da cidade, v. cap. 8.

[9]: Sei que Hélio é nome comum entre gaúchos velhos, especialmente se descendem de alemães, como os personagens de BES. Mas o papel do escritor é enterrar pistas para o leitor desencavar, e o papel do leitor é tentar ler nas entrelinhas e enxergar abaixo da superfície do livro. Antes de ser alemão ou gaúcho, hélio já era grego e multimilenar. A precedência é do mito, não da história.

[10]: Fontes: aqui e aqui. Interessante notar, acerca da aproximação/oposição entre Viviane e a Dama do Lago, que no cap. 5 o protagonista tem um encontro com a Fata Morgana (explicada no cap. 8). Morgana, no ciclo arturiano, é sobrinha da Dama do Lago e irmã e Artur.

[11]: Há um aspecto a mais no nome Viviana, "viva", que se ilustra a partir do cap. 13 especialmente, mas transparece em todo o livro. Ela é a mulher que estará eternamente "viva" na memória dele, porque, sendo a inesquecível, o verdadeiro amor, é a amada imortal, ou seja, a "sempre viva". Isso é coerente com a trajetória amorosa do protagonista, que parece perseguido por mulheres com nome de flor (Dália, Jasmim, a derradeira cujo nome verdadeiro não sabemos, mas que tem uma rosa tatuada no corpo (cap. 7)). A essas se soma a "sempre viva", que também é nome de flor, aliás, flor "quase extinta e muito cara", que "recebeu este nome pelo fato de, mesmo depois de ser colhida, permanece viva por 60 anos ou mais" (fonte aqui). Ou seja, é uma flor caríssima, como Viviane é caríssima (no sentido de muito especial), para o protagonista. E uma flor que continua viva depois de morta (uma vez colhida, decepada do caule, a planta está biologicamente morta), como Viviane continua na memória e no coração do protagonista apesar de não haver esperança de reatarem.

[12]: Há mais duas personagens que mereceriam, talvez, o qualificativo de "sem nome". Viviane tem duas possíveis etimologias, uma lembrada na nota 13; a outra vem de um erro na grafia do nome galês Ninian, feminino de Nynniaw, que ninguém sabe o que significa (fonte aqui). Ou seja, alguém cujo nome verdadeiro (o significado por trás do nome) não se sabe, o que equivale a sem nome. A outra é a prostituta que será depois esposa e mãe dos filhos do triatleta. Ela se apresenta por dois nomes, mas é bem provável que sejam ambos falsos: ninguém espera que a prostituta diga seu nome verdadeiro ao cliente. Como lembrado antes, saber o nome é adquirir poder sobre. Dar o nome verdadeiro, no caso da prostituta, significa sair da personagem e franquear ao cliente acesso à pessoa real que o interpreta. Logo, impensável. Daí que não sabemos também o nome da moça com tatuagem de rosa.

[13]: "Os mitos e espaços poéticos nascem não só da realidade circundante, compartilhada por autor e leitores, mas também do diálogo com tudo o que, vindo de tempos anteriores, constitui a chamada tradição literária. É como se a literatura fosse um constante passar a limpo de textos anteriores, constituindo o conjunto de tudo – passado e presente – o grande texto único da literatura" (Lajolo, 1982). Só existe uma história para contar: a história do homem no mundo; nós no mundo, ou nós e o mundo, ou nós contra o mundo. O que Joyce chamava "o grave e constante no sofrimento humano" é o tema principal da mitologia clássica, e da literatura desde sempre. "A causa secreta de todo sofrimento (...) é a própria mortalidade, condição primordial da vida. Quando se trata de afirmar a vida, a mortalidade não pode ser negada" (Campbell, 1990). Freud (1930) indica as fontes principais da angústia do homem na cultura: as exigências imperativas do social, a degradação do corpo, a morte e os conflitos inerentes aos laços sociais (amor, relações familiares, de trabalho e de amizade). Sem dúvida, o amor, a religião e os ideais de revolução social para transformar o mundo fazem parte das grandes ilusões humanas: fraternidade, eternidade, felicidade e liberdade (Ferreira, 2004), e a única história que existe para contar é a história do homem perseguindo alguma dessas ilusões. Era o padrão que já aparecia nos poemas épicos de Homero trata das quatro grandes batalhas do ser humano: contra a natureza, contra os deuses (ou o destino), contra os outros humanos e contra si-mesmo. Esse padrão segue atual, a narrativa literária, ou cinematográfica, é normalmente a história de um homem e seu conflito, e este é um dentre quatro tipos básicos: o conflito físico (o protagonista enfrenta fisicamente o antagonista ou as forças da natureza); o conflito clássico (o protagonista encara as circunstâncias da sua vida ou luta contra seu “destino”); o conflito social (o protagonista luta contra ideias, costumes e valores do meio em que está inserido); e o conflito psicológico (o protagonista enfrenta suas próprias escolhas, idéias de certo e errado, suas limitações) (Jatobá, 2008).

[14]: Fonte aqui.

[15]: Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu "erro".

[16]: "Ele era um violeiro e tanto", "tinha alma de artista", "devia ter percorrido o mundo tocando música e botando pra fora os sentimentos filosóficos dele"; cantando enlouquecia as mulheres, conforme a descrição dada pelo filho e pela esposa no cap. 1.

[17]: Cap. 9.

[18]: Orfeu é chamado pescador, que pesca homens que vivem na água como peixes, trazendo-os para fora, para a luz. O pescador de homens. É um motivo mais antigo que a cristandade, a idéia da metamorfose do peixe em homem. Orfeu, assim, é uma das matrizes da figura crística (Campbell, 1990, p.226). Mais adiante falaremos dos aspectos crísticos em BES, mas cabe anotar desde já que o triatleta, depois de terminar sua jornada heroica, virou salva-vidas, isto é, um "pescador de homens", alguém que tira pessoas da morte (do risco iminente de afogamento) para a vida, que ressuscita (as manobras de primeiros socorros com respiração boca a boca que o salva vidas aplica aos afogados são chamadas popularmente de reanimação; reanimar é devolver a alma).

[19]: Noto, ademais, que Orfeu era semideus de uma religião agrícola, e seu mito é vinculado ao ciclo eternamente recomeçado de nascimento, crescimento, morte, um mito onde tudo é cíclico como a natureza (Jung, 2000). Em BES, o avô era lavrador, e em Garopaba foi se entocar num sítio, onde vivia numa chácara plantando horta (cap. 1). O Sem-Nome 2, embora não seja lavrador, é alguém que, segundo sua mãe, tinha "essa noção absurda de que vocês poderiam viver no meio do mato como se vivia mil anos atrás" (cap. 9), ou seja, alguém com nostalgia de um passado arcaico e agrário. O rito de Orfeu é cíclico (Jung, 2000), e este livro que narra um mito que também me parece cíclico, onde nascimento e morte se reiteram (conforme anotei acima. O rito de Orfeu é subterrâneo (Jung, 2000) e o avô acaba se tornando uma espécie de Hades-Plutão, um rei debaixo da terra, com direito a trono e rainha (cap. 11). Por fim, como mencionei na nota imediatamente anterior, Orfeu é umas matrizes do herói de modelo crístico, e o avô é desse modelo, como "veremos":#fcr.

[20]: Easter egg (ovo de páscoa) é como se chama, na informática originalmente, uma informação oculta num programa ou numa mensagem, para ser encontrada pelo usuário/destinatário após certo esforço, como uma espécie de bônus. V. aqui.

[21]: Exemplos de figuras crísticas na ficção escrita ou cinematogrática: Anakin Skywalker (nascimento misterioso, poderes "milagrosos", sinais desses poderes desde a infância, tentado pelo "lado escuro"); Neo do filme Matrix (The One, o escolhido, poderes mágicos, ressuscita gente, volta da morte, salva o mundo, se entrega em martírio), Harry Potter (marca de nascença em forma de raio indicando ser o escolhido para vencer o Inimigo), Luke Skywalker (escolhido para protagonizar uma revolução), a mulher do médico em 'Ensaio sobre a cegueira' (assinalada, é a única que vê num mundo de cegos; sacrifica-se pelos demais, lidera um bando de discípulos, reparte o pão), o rei Artur (o escolhido para defender sua terra, recebe um sinal divino, uma espada, que tem forma de cruz, senta-se à mesa com doze discípulos, é traído por um deles); o pescador de 'O velho e o mar' (sacrifício, três dias no deserto enfrentando tentações que não o afastam da missão, depois volta quando todos o criam morto, carrega um lenho pesado, tem um discípulo, pesca, ferido no flanco, cai feito morto com as mãos feridas (Foster, 2010)), o personagem de Marlon Brando em 'Sindicato de Ladrões' (luta contra os vendilhões, é hostilizado pela própria comunidade, sacrifica-se pelos semelhantes); Jean Valjean, de 'Os Miseráveis' (perseguido porque queria repartir o pão, flagelado, ajuda os outros, persiste na bondade), Teseu (porque penetra no labirinto sem volta, que representa o mundo do Além, e dali regressa, vencendo a morte, representada pelo Minotauro (Lurker, 1988), Sônia Marmeládova de 'Crime e Castigo', o príncipe Míchkin de 'O Idiota', Aliócha Karamázov em 'Os Irmãos Karamázov', de Dostoievski (Von Glehn, 2014); Bartleby o escrivão (Rancière, 1999).

[22]: Conforme Aristóteles. Na nossa cultura a iniciação se dá por transferência de emoções, através da literatura. O teatro nasceu no momento em que os ritos iniciáticos deixaram de ser espontâneos e passaram a ser encenados, apresentados a um público passivo, que se envolve na cena de outra forma: pelo envolvimento emocional (catarse), pela identificação profunda com o destino do herói (Feijó, 1984). E assim "...nos emocionamos ‘por procuração’. Sofremos com as desventuras das personagens, exultamos com sua felicidade. Não comprometemos nossos sentimentos ou vidas: penetramos numa espécie de análogo da relação amorosa. E, é bem verdade, se o fazemos é de alma limpa: vivemos com as nossas paixões as paixões de outrem, sem os compromissos e as exigências do ‘real’" (Colli, 1981, p.78).

[23]: Dabezies, 2005, p.522.

[24]: Foster, 2010.

[25]: Christopher Vogler, empregado dos estúdios Disney, escreveu no fim dos anos 1980 um memorando resumindo em 7 páginas a obra de Joseph Campbell 'O herói de mil faces'. Os 10 longas-metragens produzidos pela Disney entre 1989 (A Pequena Sereia) e 1998 (Mulan) seguem a fórmula proposta por Vogler com base nos estudos de Campbell (entre eles Aladdin, O rei leão, O Corcunda de Notre-Dame, A Bela e a Fera, Pocahontas) ([fonte](http://pt.wikipedia.org/wiki/Memorando_de_Vogler)).

[26]: "Muitos autores escreveram inspirados pelo antigo mito da jornada ao inferno. Dante Alighieri (A Divina Comédia) foi um deles, precedido pelo personagem Enéias (da Eneida, de Virgílio) e Orfeu. Do ponto de vista simbólico mais aceito, “descer ao inferno” significa mergulhar no próprio inconsciente" (Pellegrini, 1995). "A katábasis, do grego, 'ida para baixo', é o movimento dentro das narrativas mitológicas de descida às zonas ínferas, seu mais famoso exemplo é a descida de Orfeu em busca de sua amada Eurídice. A descida as zonas ínferas é uma epifania recorrente nas religiões originárias, seja na conquista de Nifelheim por Sigurd ou na conquista do Santo Graal por Percival. A katábasis constitui-se no mito que analisamos pela invasão nos territórios do Minotauro. O Labirinto é o Outro Mundo, ou assim como chamam os galeses, o Annwn. O Monstro que o habita é o rei deste mundo, o Zeus Ínfero" (Silva).

[27]: Um "elixir doador de vida", um amuleto ou troféu (a juba do leão de Neméia, a cabeça da medusa, o velo de ouro, a pedra filosofal, a espada mágica, o graal, enfim). Esse objeto mágico é representativo da sua transformação, da sua nova condição enriquecida pela aventura. O motivo básico, ensina Campbell (1990), é o abandono de certa condição e o encontro de uma "fonte de vida" que conduz a outra condição, mais rica e madura.

[28]: Brandão, 1985.

[29]: Os heróis são sempre viajantes, quase nunca permanecem num mesmo lugar (Pellegrini, 1995). O tema da viagem é a descrição de um itinerário físico durante o qual o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento, ou do pecado à salvação, do Erro inicial à Verdade final. Símbolo de transcendência ou libertação (Setaro, 2015). Do ponto de vista espiritual, uma jornada ou viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço, um deslocar-se de um lugar para outro, simboliza a expressão de um urgente desejo de descoberta e de mudança (Pellegrini, 1995). Geralmente, mas não necessariamente, trata-se de uma jornada solitária ou peregrinação, onde o iniciado descobre a natureza da morte. Muitas vezes o herói é guiado por um mestre de iniciação, ou por uma figura feminina superior (Anima) (Jung, 2000). Para fins simbólico-literários, ademais, a viagem não precisa ser literal: um trajeto curto, apenas uns poucos metros, podem representar a viagem para os fins metafóricos, desde que o herói o percorra para buscar um objetivo, sofra no percurso, e ao final sofra uma transformação (percorrer um labirinto, por exemplo, real ou metafórico, é uma viagem, para fins simbólicos). A Odisseia é o padrão histórico da viagem do herói. Uma lista de livros ou filmes onde a viagem é componente fundamental seria imensa. O IMDB, por exemplo, lista 628 filmes na categoria road movie (aqui).

[30]: O cowboy casar com a prostituta, no final, é tema recorrente nos westerns: 'Rio Bravo' ('Rio Bravo', 1959), 'Era uma vez no oeste' ('C'era una volta il West', 1968), 'Johny Guitar' ('Johny Guitar', 1954), 'O Rio das Almas Perdidas' ('River of No Return', 1954), 'No tempo das diligências' ('Stagecoach', 1939), 'Django' ('Django', 1966).

[31]: Todas citações de 'Grande Sertão: veredas', respectivamente págs. 68, 8, 18, 356, 538, 497, 267, 8, 289.

[32]: Completa o seu processo de individuação, que, para Jung, significa tornar-se um ser único, tornar-se si mesmo, tornar-se um consigo mesmo; um processo de diferenciação que implica despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo dos arquétipos, livrando o indivíduo da subordinação a modos de ser e fazer impostos pelo coletivo (Argollo, 2008).

[33]: Penetrar nas entranha da terra (na caverna) equivale a um enterro simbólico, alegoria presente em muitos mitos e ritos iniciáticos. O enterro simbólico é simbolicamente semelhante à imersão batismal, serve para curar, fortificar, ou iniciar num mistério. A idéia é sempre a mesma: regenerar pelo contato com as forças da terra, morrer para uma forma de vida, para renascer em uma outra forma (Chevalier & Gheerbrant, 2008). Nosso herói passa pelo sepultamento simbólico, ao penetrar na caverna, e ali é iniciado no mistério da sua identidade, ao confrontar o espelho distorcido que o avô representa.

[34]: Ele poderia dizer, como Riobaldo, "sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo. Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa" (Rosa, 2008, p. 14).

[35]: Bowker, 1997.

[36]: Chevalier & Gheerbrant, 2008.

[37]: Chevalier & Gheerbrant, 2008; Cirlot, 1984.

[38]: Só para lembrar alguns personagens ausentes famosos: Gatsby (de 'O grande Gatsby'), Godot (de 'Esperando Godot'), Natalia (de 'O eterno marido' de Dostoievski), Tristão (do 'Memorial de Ayres' de Machado de Assis), Rosa (de 'O último tango em Paris', de Bertolucci), Kurtz (de 'Coração das trevas' de Joseph Conrad e também de 'Apocalypse Now' de F. F. Coppolla), Laura Palmer (do seriado cult 'Twin Peaks'), Diotima (no 'Banquete' de Platão), Tartufo (da peça homônima de Molière). O personagem ausente não precisa ficar invisível até o fim; para caracterizar-se como tal basta que esteja fora do palco por um tempo relevante, durante o qual a história versa sobre ele e cria o suspense e o interesse em torno dele.

[39]: Para quem quiser se aprofundar no tema, indico este estudo.

[40]: Para quem estiver com mais pressa, este estudo resume o conto, e o interpreta.

[41]: Prose, 2008.

[42]: As associações simbólicas mais óbvias são: a) pela sua capacidade de adaptação ao homem, costuma ser um símbolo da fidelidade no relacionamento; b) o cão é tradicionalmente associado à função de guia, porque conduz os deficientes visuais, de modo que parece provável a função da cadela como guia do protagonista, pela vida e pela morte. O pai, que não ia mais viver, não precisava mais daquela guia, podia passá-la ao filho. Mas no campo simbólico e arcaico a associação mais forte é a que identifica o cão a um psicopompo, isto é, ser que conduz a alma ao mundo dos mortos, companheiro da alma na travessia noturna ou subterrânea, o que o faz um símbolo ligado à morte, mas também à ressurreição (dois dos temas deste livro). Por isso na Rússia era costume levar um cão junto da cama do moribundo para que recebesse alimento de suas mãos, alimento esse que garantia que o cão servisse de guia da sua alma para o outro mundo. Hécate, a deusa do nascimento e que estava relacionada ainda à magia, a iniciação e a morte, recebia sacrifício de cães. Anúbis, que é um deus-guia para o mundo inferior, é representado como um cão selvagem. Interpretações extraídas de Chevalier & Gheerbrant (2008), Cirlot (1984) e Eliade (2007). Beta poderia ser analisada, então, como desempenhando simultaneamente a função de guia, guardiã, iniciadora e condutora do protagonista na travessia da sua “noite escura da alma”.

[42]: Vem ao caso este trecho de Demian, de Hermann Hesse: 'Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor'.