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Ítalo Calvino nasceu em Cuba, em 1923, filho de pais italianos, mas viveu na Itália desde os dois anos de idade. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Formado em Letras, militou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial e foi membro do Partido Comunista Italiano até 1956, tendo se desfiliado em 1957. Escreveu romances, contos, libretos de ópera, roteiros de cinema e televisão e letras de música. Recebeu o World Fantasy Award pelo conjunto da obra em 1982. Em sua homenagem nomearam uma cratera no planeta Mercúrio e um cinturão de asteroides. Morreu em 1985.



LITERATURA | RESENHA
As cidades invisíveis
Na esfuziante imaginação de Calvino, o encontro de dois mundos opostos é pretexto para a descrição de cidades que são metáforas da história, da linguagem e da existência humanas


04 junho 2017 | comente


O encontro do mongol com o veneziano é o encontro de dois mundos distantes, alienígenas. É metafórico porque nossa própria existência é o encontro de dois mundos, o da natureza com o da cultura, ou o lugar onde o espírito encontra a matéria.

Uma cidade é sempre, de certa forma, encontro de mundos, pois cada vivente vem ali coexistir: há o encontro da individualidade com a comunidade.
E de qualquer forma qualquer diálogo é encontro de dois alienígenas, o outro é sempre o estrangeiro para mim, o outro é o não-eu. Cada diálogo é como Despina, confim entre dois desertos, entre dois mundos.


Todas as imagens nesta página são da artista plástica Karina Puente, que tem um projeto lindo de ilustrar as cidades invisíveis do livro aqui comentado, veja que beleza. Fiquei sabendo disso porque o Nexo Jornal comentou que sairá uma nova edição da obra, com ilustrações do artista Matteo Pericoli, veja aqui


Esse encontro é mediado pela linguagem. O homem é prisioneiro na teia da linguagem, esse labirinto de símbolos. Toda a civilização, o mundo do homem, é como a cidade de Tamara, um “carregado invólucro de símbolos”. O mundo é, para a consciência humana, uma coleção de conceitos mediados pelos símbolos da linguagem, que “talvez não passe de um zodíaco de fantasmas da mente”.



No encontro, a linguagem é instrumento da comunicação, que é coisa de dois, um processo, uma relação. “Quem comanda a narração não é a voz, é o ouvido”: a mensagem significa o que o ouvinte pode entender e entende. Cada um traz seus conteúdos para o jogo do diálogo: é o meu dicionário interno, pessoal, que atribui significado à palavra que o outro me lança. Polo começa a narrar sem saber a língua de Kublai, e vai aprendendo-a aos poucos, mas mesmo que a aprenda inteira nunca será unívoca a comunicação.

A mensagem é diversa para cada receptor. “Cada cidade recebe a forma do deserto a que se opõe; é assim que o cameleiro e o marinheiro veem Despina, cidade de confim entre dois desertos”: porque cada um compara a cidade descrita com sua ideia de cidade: “para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita”.

No jogo de pensar-traduzir-dizer-ouvir-traduzir-pensar, a verdade não fica inteira nem na voz de quem fala nem no ouvido que escuta, fica no entremeio, como aquela nuvem de fumaça:

“Frases e atos talvez apenas pensados, enquanto os dois, silenciosos e imóveis, observavam a lenta ascensão da fumaça de seus cachimbos. A nuvem ora se dissolvia num fio de vento ora restava suspensa no ar; e a resposta estava naquela nuvem”


Isso se aplica à obra de arte, cuja fruição é uma forma de comunicação-processo-diálogo entre criador e fruidor, ou entre obra e fruidor. A conversa entre duas culturas.



A cidade de Calvino é metáfora do ser do homem, da existência humana: é uma construção a partir da base natural, e não algo dado pela natureza. É, como a vida humana, um ínfimo fio de teia pendurado entre duas imensidões, o passado e o futuro. As cidades, como as vidas humanas, “são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa”. E a vida humana é como a cidade de Trude, que da qual não se pode sair: “pode partir quando quiser ... mas você chegará a uma outra Trude, igual ponto por ponto; o mundo é recoberto por uma única Trude que não tem começo nem fim, só muda o nome no aeroporto”. Assim como é universal a experiência do humano.

A cidade é, por extensão, metáfora da cultura, do conjunto das obras humanas, dos modos de ser e dos fazeres que diferenciam o homem dos outros animais, que humanizam o homem. Cidade é símbolo da comunidade dos homens, da soma dos homens e suas ações. E, assim, a cidade é também a história dos homens, a cristalização do resultado dessa história, que é a reciclagem-remontagem-rearranjo das obras passadas da humanidade, como a cidade de Clarisse. A cidade, como a sociedade, é essa grade de relações cruzadas, como na cidade de Ercília. Assim como a cidade é a soma das casas, a história-lenda da cidade é a suma das lendas individuais dos vivos e mortos dali.

Sendo a obra humana, a cidade é, como o homem, processo: algo que não está pronto, um ser vivo e em movimento, em contínua transformação, “um esfacelo sem fim e sem forma” que nos faz “herdeiros de suas prolongadas ruínas”. Um processo onde os nascidos substituem os mortos nos seus papéis, como na cidade de Melânia. Uma cidade em permanente, interminável construção, que nunca fica pronta, tal como a cidade de Tecla.



Se a cidade é símbolo da história humana, é possível vê-la como um discurso, uma narrativa, porque o passado e a memória são, em suma, isso: toda viagem é “uma viagem através da memória”, e toda cidade é um repositório de memórias, porque é história petrificada, que “se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”, de forma que uma descrição da cidade “como é atualmente deveria conter todo o passado” dela, pois a cidade materializa o seu passado “como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. A cidade é documento, é o filme da sua própria vida, onde cada minuto é um fotograma.

Se a cidade é história solidificada, e se a história é discurso, a cidade é também um discurso, uma narrativa, uma história que se conta: “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes”. A cidade não é feita de alvenaria só, é feita de “pedaços de diálogo”, “das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado”, porque como o império de Kublai, a cidade-história dos homens, o todo, só ganha sentido na narrativa, na recoleta, na retrovisão. Viver é escrever a própria lenda, e a cidade é documento, é palimpsesto onde vão sendo sobrepostas as versões da lenda de um agrupamento humano. Aqui é que as cidades invisíveis encontram "As cidades invisíveis", o livro: aquelas e este são narrativas.

Afinal, como conhecer (a cidade, a verdade, a coisa em si) se não pelo relato? Como conhecer-me, sem a mediação do outro? Como o império de Kublai, o ser de cada um só se manifesta para ele mesmo “por meio de olhos e ouvidos estrangeiros”.



E nessa narrativa viva e concreta que é a cidade dos homens, nesse diálogo multitudinário que ela contém, onde se situa a verdade? Alguém vê de fato a cidade real? Ou a cidade real é a cidade de Deus, subentendida e modelar, um desenho invisível no céu como o projeto da cidade Eudóxia? No eterno devir da cidade que nunca está pronta, existe mesmo uma cidade para ver, ou só um perpétuo fazer que nunca fica feito? No diálogo entre os estrangeiros, onde cada qual é o único falante da sua língua particular, a verdade é “o espaço que resta em torno deles, um vazio não preenchido por palavras”, é o resíduo de “frases e atos talvez apenas pensados”

“enquanto os dois, silenciosos e imóveis, observavam a lenta ascensão da fumaça de seus cachimbos. A nuvem ora se dissolvia num fio de vento ora restava suspensa no ar; e a resposta estava naquela nuvem”


A cidade real, a verdade, é como a cidade de Bauci, na qual o viajante, depois da longa jornada, entra “sem perceber que já chegou”. Ou como Fílide, que é invisível para quem a procura, e só pode ser flagrada de relance, de surpresa. Ou, finalmente, como o arco de pedra que sustenta a ponte, que não é sustentada por nenhuma das pedras em particular, só pelo arco imaginário. Assim, toda cidade é invisível, porque nenhum olhar pode totalizá-la, apreendê-la em síntese, no seu significado, no seu sentido.



A cidade dos homens, como toda obra de homem, é como a cidade de Zobeide, uma coleção de armadilhas feitas para capturar algo que só existe no sonho. É metáfora de todo esforço humano, que é um empenho para ultrapassar a incontornável condenação ao nada.