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Józef Teodor Konrad Korzeniowski (1857-1924) nasceu e foi educado na Polônia ocupada. Seu pai, aristocrata empobrecido, foi escritor e militante armado contra a ocupação russa, e acabou condenado a trabalhos forçados na Sibéria; a mãe morreu de tuberculose no exílio. Józef tornou-se marinheiro aos 17 anos, aos 21 tentou suicídio e aprendeu inglês. Fez sua carreira literária na Inglaterra, escrevendo em inglês sob o pseudônimo Joseph Conrad. Rudyard Kipling, vencedor do Nobel, disse de Conrad: “empunhando a caneta ele foi o maior de nós todos”



LITERATURA | RESENHA
o coração das trevas
Exilado de sua terra, de sua cultura e de sua língua, Korneziowski/Conrad faz uma prosa eternamente estrangeira a meditar sobre um mundo dominado pela Europa, e nos convida à pergunta: quem são os bárbaros, afinal?


5 agosto 2017 | comente


Procuro sempre desvincular minhas meditações sobre os livros que leio da pessoa e da biografia do autor. Às vezes isso é impossível, e creio que Joseph Conrad demonstre isso. Filho de um ativista político exilado pelos invasores russos, Conrad sofreu na pele as consequência do colonialismo, e viveu uma vida de exilado de que nem o sucesso literário e a celebridade o livraram. Os críticos, que o exaltam como sendo um dos grandes mestres da prosa em inglês, ressaltam sempre, simultaneamente, o caráter “estrangeiro” da sua obra. Kipling (indiscutivelmente um dos grandes da literatura inglesa) por exemplo, disse: “não existe nada inglês na mentalidade de Conrad: quando eu o leio, sempre tenho a impressão de estar lendo uma excelente tradução de um autor estrangeiro”. Por mais perfeita que seja a escrita inglesa de Conrad, seu olhar é sempre um olhar de fora. Não só um olhar de quem veio de outra cultura e à luz dela vê a Inglaterra, então no auge do seu poder colonial. É também um olhar da vítima para o opressor, o olhar com que o colonizado julga o conquistador. É uma literatura que indaga sobre o preço do “progresso” e, por isso, é uma literatura atual.

Por isso que o seu protagonista, Marlow, embora seja inglês e marinheiro como os personagens que ouvem seu relato, é, entre os demais marinheiros britânicos, um esquisito, um diferente, de certo modo um estrangeiro. Isso é realçado já no começo, quando o narrador, esse personagem sem nome que nos conta o que ouviu de Marlow, o apresenta como sendo um homem que “não representava sua classe”, porque os marinheiros, segundo o narrador, são, em primeiro lugar, uma espécie de sedentários que, embora viagem o mundo, nunca se sentem saindo da sua verdadeira casa, que é o barco. O marinheiro típico, explica o narrador, é alguém para quem “uma caminhada casual, ou uma eventual bebedeira (...) bastam para revelar-lhe o segredo de todo um continente – e geralmente acha que o segredo não vale a pena ser conhecido”. Para esse marinheiro típico, a variada imensidão da vida passa imperceptível, desprovida de qualquer misterioso sentido, olhada com uma “ignorância levemente desdenhosa”. Marlow não é assim. Ele, para começar, é um wanderer, palavra que pode significar peregrino, mas também significa andarilho, vagabundo, errante: Marlow não era só um navegante, mas também alguém que caminhava, que se movia a pé pelo mundo, e que se afundava na intimidade colorida ou sombria das terras distantes, em vez de apenas transitar pela monotonia cinzenta e universal do mar. Marlow não se contenta com conhecer a beirada litorânea das coisas, é alguém que avança terra adentro, e por isso é um marinheiro “de água doce”. A história desse livro é exatamente a história de uma dessas entradas país adentro, por rio, pela água doce, um avanço rumo ao interior (em vários sentidos da palavra).

Há mais: todo marinheiro gosta de contar histórias, mas suas narrações “têm uma simplicidade direta, cujo significado cabe inteiramente na casca de uma noz partida”. Não é assim a narrativa de Marlow, para quem “o significado de um episódio não estava dentro como um cerne, mas fora, envolvendo a narrativa (...) como um fulgor iluminando a neblina, na semelhança de um desses nevoentos halos que às vezes se tornam visíveis pela iluminação espectral do luar”. É bem assim esse livro sobre Kurtz, Marlow e as trevas que habitam o homem e o continente. É um livro que vai pelas bordas, que trata da aura que circunda a coisa-em-si, um livro sobre as circunstâncias em vez de sobre os fatos mesmos. Marlow-Conrad quer falar do que não cabe nas palavras: o insondável coração das trevas que toldam a alma do homem não pode ser iluminado pela luz da razão, e, portanto, não se deixa capturar por essa enganosa ferramenta da razão, a linguagem. Não é possível explicar Kurtz, esse preposto e modelo do conquistador branco europeu; então, Conrad-Marlow procura compreender, o que é maior e mais difícil do que explicar.

O livro é todo sobre Kurtz, mas Kurtz só aparece perto do final, e só aparece para morrer diante do leitor. Das suas obras, o livro quase nada diz. Fala da admiração que todos tinham por ele — e que se manifesta muitas vezes na forma de inveja, despeito ou ódio —, mas nunca fica claro o que, exatamente, ele fez ou foi para merecer tais sentimentos. Fala-se dos seus estupendos resultados como fornecedor de marfim, mas sobre seus métodos para obtê-lo quase nada é dito, um pouco é apenas insinuado, subentendido. Sabe-se que era extraordinariamente eloquente, mas nem Kurtz nem Marlow conseguem reproduzir em palavras o que ele dizia. O pouco que se capta das falas de Kurtz é trivial, sem interesse nem grandeza. O jornalista que o conhecia confirma, ao final: o discurso de Kurtz era mágico, empolgante, incendiário, mas suas ideias, reduzidas a escrito, se apagavam, não tinham brilho. Não era nas ideias, no conteúdo, que estava a magia: era no homem em si, na voz e não nas palavras, na eloquência e não no significado. A voz era irresistível, hipnótica; as palavras, triviais e baças. Na presença dele, explica Marlow, essas palavras chochas tinham outro significado, soavam majestosas e cheias de implicações, como as que se houve num sonho ou num pesadelo. Mas, desperto o sonhador, as mesmas palavras aparecem, na luz do dia desperto, como carvões em vez de diamantes.


Leopoldo II, rei da Bélgica de 1865 a 1909. Imagem em domínio público. Sobre o domínio belga no Congo/Zaire, pano de fundo da obra “Coração das trevas”, veja a nota [11]).


E assim Marlow, esse andarilho-investigador da alma humana — para quem o significado de algo não está no seu núcleo mas na casca, no entorno —, vai narrando a periferia da vida de Kurtz. Sabemos que, com seu magnetismo pessoal, eloquência e carisma, ele seduziu os nativos a ponto de ser reverenciado, idolatrado e temido como um deus. Sabe-se, por alto, por insinuações ligeiras, que ele abusou desse poder e desse status, manipulando as tribos para obter, por métodos inexplicados mas provavelmente cruéis, o precioso marfim que o tornou célebre. Sabe-se que ele despertou amor, ódio, veneração e inveja, mas o que Marlow apresenta da pessoa e dos feitos de Kurtz não basta para justificar tais sentimentos. Sabe-se que, na iminência da morte, Kurtz se horroriza ao relembrar o que fez, mas não se sabe bem o que teria sido. Da sua pessoa, das suas obras medonhas ou majestosas, do brilho da sua presença, nós, leitores, assim como o narrador, vemos somente as sombras. Mesmo dos pavorosos danos que a dominação europeia causa aos nativos vemos só as beiradas, os sintomas mais externos: um campo de inválidos deixados para morrer, um punhado de escravos a labutar em condições inumanas... Sabemos que há mais, que existe mais feiura a reportar. Mas Marlow se abstem. Ele dá ao leitor só o que a visão periférica capta. O centro da cena fica para o leitor reconstituir, ou construir. Como resultado, esse relato, feito para descrever Kurtz, descreve apenas um fantasma diáfano, fluido, sem substância. Marlow diz, ao final, que conheceu Kurtz tão bem quanto um homem pode conhecer a outro. E é isso, enfim, que um homem pode conhecer do outro: uns fiapos soltos de palavras e obras que mal esboçam um contorno fugidio, a sombra de um fantasma etéreo que é a imitação de algo mais além, além do campo de visão. Cabe perguntar, seguindo a linha do pensamento de Marlow-Conrad-Korneziowski: e será que de si mesmo um homem pode conhecer mais do que isso? Será que um homem consegue mergulhar fundo o bastante nas trevas do próprio coração a ponto de enxergar seu verdadeiro eu lá no fundo? E, se o conseguir, não acabará, como Kurtz, vendo debaixo do fino verniz da civilização um selvagem tão primitivo e feroz quanto as feras embrenhadas na mata pré-histórica? Não terá, talvez, de repetir, como Kurtz, aquele tétrico mantra: “o horror! o horror!”?

Neste mundo - como eu o conheci - somos feitos para sofrer sem a sombra de uma razão, de uma causa ou de uma culpa ... Não há moral, nenhum conhecimento e nenhuma esperança, há apenas a consciência de nós mesmos a nos conduzir sobre um mundo que ... é sempre uma aparência vã e fugaz

(Joseph Conrad)

Há muito de patético nesse Kurtz fáustico, cuja desmedida [7] é tipicamente fáustica [1]: sucumbe ao próprio poder, deixa-se levar longe demais pela paixão de exercer o seu poder sobre os outros. Aceita sacrifícios de seus devotos até o ponto de perder-se, de perder a própria alma. Kurtz, cujo nome significa “curto” (Marlow é quem o lembra), é um personagem coletivo, representa a Europa conquistadora, predadora do mundo mais fraco e mais pobre. Marlow mesmo o refere, ao lembrar as origens multiculturais de seu ídolo: “a Europa inteira contribuíra para a fabricação de Kurtz”. Kurtz representa o fenômeno do homem branco, tão inteligente, culto e dotado que aparece, aos olhos das tribos pré-históricas que escraviza, grande e brilhante como um deus. Sua mensagem não é inteligível, mas sua voz é aterradora (é belíssima, a propósito, a primeira imagem em que Kurtz aparece no livro: discursa aos nativos que o veneram, em termos candentes, e salva com sua eloquência as vidas dos brancos todos; mas, do que ele diz, não se ouve uma só palavra; seu discurso é tão hermético para o leitor quanto para os nativos: não são as palavras que importam). Conrad-Marlow parecem estar avisando que o homem branco europeu, conquistador do mundo, só perceberá tarde demais, como Kurtz, o quão devastadora e fátua foi a sua passagem pelo mundo, e a que custo insuportável sua obra se fez. A obra da civilização, Conrad parece dizer, é “curta”, brilhante mas efêmera como um trovão, que mal arranha a superfície da escuridão que a precedeu, e que a sucederá. É nisso, e apenas nisso, que o livro explicita onde estaria a grandeza de Kurt, é só por isso que sabemos que Kurtz merece um livro: porque ele, ainda que tarde, percebeu; ainda que tarde, olhou para a própria alma e viu as trevas, enxergou a própria história no espelho negro da morte e constatou o horror dos seus feitos.

Quanto ao estilo de Conrad, não seria leal dizer que é fácil. É tortuoso, talvez porque ele pretenda realçar o aspecto sombrio, difícil, penoso, da jornada do seu protagonista. Não há como narrar com leveza uma peregrinação pelo inferno. Então, o texto é um tanto pesado, o que condiz com o peso que Marlow carrega intimamente. E é nebuloso porque é o relato feito por alguém que não entendeu muito bem o que tem a contar, e que compartilha com o ouvinte-leitor não uma certeza, mas uma vaga perplexidade. Mas há belas frases, belíssimas imagens e sólidos personagens. Quanto a estes, Conrad retrata muito bem os coadjuvantes, em especial o Arlequim, o gerente do posto e outros personagens menores, e com poucas pinceladas. Só restam misteriosos, propositalmente, os dois principais, que são os que Marlow conhece menos: o fantasma Kurtz, e ele mesmo, o próprio Marlow. Quanto às boas imagens, já mencionei a impactante aparição, depois de tanto suspense, do personagem principal. O personagem oculto ou ausente [8] é um clichê recorrente no cinema e na literatura, um dos truques preferidos dos autores, por causa do seu poder de interessar o leitor. E, aqui, Conrad sai-se muito bem na construção do seu personagem misterioso, com uma diferença que o retira do terreno do lugar-comum: o seu personagem misterioso torna-se ainda mais misterioso depois que aparece. Outra imagem de grande poder é o desenho paralelo das duas mulheres de Kurtz, de braços estendidos tentando alcançar o seu fantasma evanescente. Elas são muito claramente a representação dos dois mundos a que Kurtz pertenceu, o civilizado e o selvagem, o aculturado e o pré-histórico. Elas não têm nome, no livro, e quando um escritor deixa um personagem sem nome geralmente é porque ele representa algo maior, um grupo, uma ideia, um continente, por exemplo. Essas duas mulheres sem nome não têm nome porque sabemos quem elas são: Europa, culta, elegante, madura, triste e sem esperança, e África, soberba, exótica, misteriosa, dolorida, aflita, coberta de amuletos que não a salvam do perigo. Curioso é que uma delas não diz nenhuma palavra, mas é, talvez, mais eloquente que a outra. Também é preciosa a imagem dos canibais famintos que não comem os brancos que os exploram: essa cena resta como um mistério que Marlow nos convida a tentar explicar. Será que os brancos pareciam, àqueles canibais paleolíticos, tão asquerosos como pareciam a Marlow e a Conrad?



“The Rhodes Colossus”, caricatura do século XIX ironizando o domínio europeu sobre o continente africano.


E já que mencionei as duas mulheres sem nome, e o caráter simbólico-coletivo de personagens assim, cabe destacar que o narrador do livro é também um personagem, e também não tem nome. É um expediente curioso, se bem que não inédito, esse de Conrad: o narrador é um ouvinte, assim como o leitor. Talvez porque ele representa o leitor, e, muito especialmente, o leitor britânico, pois o narrador é um marinheiro inglês.

Há muito de simbólico nas imagens do livro. O “Coração das trevas” serviu de inspiração direta para “Apocalypse Now”, de Coppola [2], e faço remissão a um exame mais profundo que fiz acerca desse simbolismo na minha resenha do filme [3]. Cito um trecho:
    “A fábula se organiza numa das estruturas-tipo mais tradicionais e bem-sucedidas do cinema, a da viagem, entendida no duplo sentido do termo: é uma viagem física e emocional; enquanto o protagonista percorre um itinerário físico pleno de dificuldades e imprevistos, sua alma se desloca de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. O tema da viagem é clássico na literatura e no cinema [4], e o navegar, o viajar sobre a água, é ainda mais. Lembra a Odisséia, os argonautas, a arca de Noé, os Lusíadas. A água, o rio, o mar, na interpretação junguiana representa o inconsciente, o desconhecido, a incerteza, dúvida, indecisão [5]. E é muito eloquente o fato de navegar rio acima, contra a corrente, em direção à nascente, à fonte, à origem, ao princípio das coisas. É a jornada espiritual de um homem em direção ao ‘coração das trevas’, à sua fonte, à sua origem, à sua nascente, ao si-mesmo [6].”
Há também a sólida utilização da paisagem como metáfora dos estados de espírito do narrador [9]: Marlow vê a selva como um inimigo terrível que o observa de forma ameaçadora e o considera insignificante. A selva é um personagem presente por toda a obra, e Marlow ressalta, constantemente, essa presença e seu conteúdo amedrontador. O livro traça um paralelo muito claro entre duas trevas distintas, as do interior do continente selvagem e indomado e as do espantoso interior da alma humana, onde se esconde a mesma natureza bravia e sanguinária que há na profundeza da selva. Nessa paisagem simbólica homens minúsculos rastejam rio acima (isto é, na contramão, contrariando as forças da natureza) em direção à nascente (isto é, à fonte, à compreensão da sua origem) por cima de um curso d'água que representa o inconsciente, se aprofundando numa selva gigantesca, insondável e capaz de exterminá-los facilmente; fazem esse esforço sobre-humano (isto é, cultural, antinatural) para arrancar da natureza o marfim, que é símbolo da pureza incorruptível [10], ou seja, sua jornada é para roubar a pureza daquele Éden pré-histórico. Quanto mais avançam, paradoxalmente mais recuam em direção à sua verdadeira natureza, à sua origem (navegam em direção à fonte, lembre-se), porque o mundo à volta deles torna-se cada vez mais primitivo, mais representativo do passado da humanidade: conforme avançam no espaço recuam no tempo.

E lá no fim da jornada o que encontram é o si-mesmo: o que o livro frisa é que não existe muita diferença real entre o europeu da era industrial e o africano paleolítico: ambos são brutais e capazes de usar armas, sejam flechas ou carabinas, para obter o que querem; ambos temem o desconhecido, e têm seus fetiches, não fazendo muita diferença se adoram um totem ou o dinheiro e a glória. A experiência de Kurtz levou-o a uma revelação, a uma solução para a tragédia desse encontro sanguinolento entre dois mundos: “matem todos os bárbaros”, ele diz. Diante do genocídio que os belgas — para quem os verdadeiros Marlows e Kurtzes trabalhavam — promoveram no Congo (10 milhões de mortos, estimam alguns [11]) Conrad nos deixa com uma pergunta por responder: afinal, quem são os bárbaros?




Obras citadas

Campbell, Joseph & Moyers, Bill. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. 22ª ed., Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2008.

Dabezies, André (2005). Jesus Cristo na Literatura. In: Brune, Pierre
(org.). Dicionário de Mitos Literários. 4ª ed., trad. Carlos Sussekind. Rio: José Olympio.

Foster, T. C. (2010). Para ler literatura como um professor. São Paulo :
Lua de Papel, 271 pp., trad. Frederico Dentello.

Jung et allii. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 2000.

Pellegrini, L.. Dicionário de Símbolos Esotéricos. São Paulo: Editora Três,
1995.

Setaro, André. Curso de cinema. Recuperado em 22/05/2015, 10h24m.,
aqui.




notas e comentários


[1] Peço licença para reproduzir um techo da minha resenha sobre Madame Bovary, outro personagem fáustico: Fausto é um dos mitos literários mais célebres. Surgiu como lenda transmitida oralmente, reduzida a escrito por um anônimo em Frankfurt em 1587, num livro de enorme sucesso, que teve 22 edições em dez anos e foi copiado, imitado, traduzido para vários idiomas e fez fama na Europa toda. Em 1590 o célebre dramaturgo Christopher Marlowe escreveu uma peça baseada numa das versões dessa obra. Goethe trabalhou no seu Fausto, o mais famoso até hoje, de 1771 até 1832, ou seja, praticamente toda sua vida adulta. E a partir da obra dele Fausto se incorporou ao universo literário e as versões, adaptações, releituras e paródias são quase incontáveis. Como observa Dabezies (2005) entre os mitos literários Fausto é “um paradigma quase completo”.

O Fausto das lendas orais medievais é um bruxo ambicioso que troca sua alma pelo conhecimento da magia, e sofre uma morte cruel. Sua história é redigida com intenção de fazer rir e meter medo, simultaneamente. O de Marlowe segue esse modelo farsesco, mas tem ambições um pouco mais heroicas; a comicidade é dada pelo contraste entre o sábio intelectual que não consegue se livrar das trapaças do diabo e ruma para a perdição, enquanto seu criado, um bufão burlesco, mas cheio de bom senso, escapa (um esquema similar ao Dom-Quixote / Sancho Pança).

O Fausto de Goethe e dos românticos ambiciona o saber, “um titã em revolta contra um mundo malfeito, um individualista suficientemente audacioso para desafiar a moralidade, a sociedade, a religião”. Em algumas versões ele é salvo, ou pela nobreza de suas aspirações, ou pelo amor de uma mulher.

O Fausto moderno segue esse modelo heroico, é um Prometeu à moda do super-homem de Nietzsche, uma figura ideal da humanidade moderna que aspira à liberdade e ao progresso, é movido pela vontade de potência.

Porque foi uma das ideias manipuladas pelos nacional-socialistas, a figura fáustica foi estigmatizada depois da 2ª Guerra, e hoje é menos popular na literatura, talvez porque nos dias atuais “tenhamos menos necessidade de figuras simbólicas do homem às voltas com seus demônios” (Dabezies, 2005, p.339).

Em suma, o Fausto medieval é o homem da Renascença, querendo o poder, o saber e o prazer. O romantismo o relê como um heroi modelo de humanidade, com desejo metafísico de infinito, aspirando ao conhecimento e ao amor, terminando por estender suas pretensões além dos limites da humanidade e rumando assim para a ruína. O Fausto moderno é imagem ideal do homem moderno, liberto das representações antigas e conquistando sem drama o saber e a força, mas lembrando que o homem não afasta facilmente da sua vida o mal e o erro, nem a ambiguidade dos seus poderes aumentados. Os dois motores que dão força ao mito são o ímpeto que move o homem e o peso que o mal e a tentação têm (Dabezies, 2005, p.343)

[2] Conrad escreveu também outro livro, “O duelo” (até onde sei sem edição em português), que inspirou um excelente filme de Ridley Scott, “Os duelistas”.

[3] Aqui. É um daqueles raros casos em que o filme é tão bom quanto o livro em que se baseou (ou, neste caso, creio que ainda melhor).

[4] “A viagem é o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (…), Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos (…), Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71, de Ralph Nelson (…)”. Fragmento do curso de cinema de André Setaro. Os heróis são sempre viajantes, quase nunca permanecem num mesmo lugar (Pellegrini, 1995). O tema da viagem é a descrição de um itinerário físico durante o qual o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento,ou do pecado à salvação, do Erro inicial à Verdade final. Símbolo de transcendência ou libertação (Setaro, 2015). Do ponto de vista espiritual, uma jornada ou viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço, um deslocar-se de um lugar para outro, simboliza a expressão de um urgente desejo de descoberta e de mudança (Pellegrini, 1995). Geralmente, mas não necessariamente, trata-se de uma jornada solitária ou peregrinação, onde o iniciado descobre a natureza da morte. Muitas vezes o herói é guiado por um mestre de iniciação, ou por uma figura feminina superior (Anima) (Jung, 2000). Para fins simbólico-literários, ademais, a viagem não precisa ser literal: um trajeto curto, apenas uns poucos metros, podem representar a viagem para os fins metafóricos, desde que o herói o percorra para buscar um objetivo, sofra no percurso, e ao final sofra uma transformação (percorrer um labirinto, por exemplo, real ou metafórico, é uma viagem, para fins simbólicos). A Odisseia é o padrão histórico da viagem do herói. Uma lista de livros ou filmes onde a viagem é componente fundamental seria imensa. O IMDB, por exemplo, lista 785 filmes na categoria roadmovie (fonte).

[5] Campbell, 1990, p.155. O oceano simboliza o inconsciente, o desconhecido. O mar também simboliza incerteza, dúvida, indecisão, e simboliza o coração humano, lugar das paixões (Chevalier, p.592-3); simboliza o caos primordial e a essência divina (Chevalier, p.650).

[6] O self é o símbolo da totalidade psíquica, o núcleo mais profundo da psique. Símbolos do Self para o homem um iniciador masculino, guru, guardião, velho sábio, Merlin, Hermes. O grande homem interior age como um redentor que tira o inconsciente do mundo e dos seus sofrimentos para levá-lo de volta à sua esfera original eterna. É o alvo final da vida. O objetivo principal do homem não é comer, beber, etc., mas ser humano. A orientação extrovertida do ego em direção ao mundo exterior há de desaparecer para dar lugar ao homem cósmico. Isso acontece quando o ego se incorpora ao Self. O fluxo discursivo das representações do ego (que vai de um pensamento a outro) e de seus desejos (que correm de um objeto a outro) acalmam-se quando é encontrado o grande homem interior (Jung, 2000, p.196-210, passim).

[7] Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu “erro”.

[8] Só para lembrar alguns, Gatsby (de ‘O grande Gatsby’), Godot (de ’Esperando Godot’), Natalia (de ‘O eterno marido’ de Dostoievski), Tristão (do ‘Memorial de Ayres’ de Machado de Assis), Rosa (de ‘O último tango em Paris’, de Bertolucci), Laura Palmer (do seriado cult ‘Twin Peaks’). O personagem ausente não precisa ficar invisível até o fim; para caracterizar-se como tal basta que esteja fora do palco por um tempo relevante, durante o qual a história versa sobre ele e cria o suspense e o interesse em torno dele.

[9] Na literatura “a geografia é metáfora da psique” (Foster, 2010, p.164). O mesmo autor anota que “Conrad envia os personagens ao coração das trevas para descobrirem a escuridão dos próprios corações”. Jung observa que “paisagens nos sonhos e na arte representam um estado de espírito inexprimível” (Jung, 2000).

[10] Chevalier, p.602.

[11] Para quem tiver interesse na história da colonização belga do Congo/Zaire, que é o pano de fundo da narrativa contida em “Coração das trevas”, há dados aqui; aqui e aqui. Há imagens chocantes aqui. Não posso afiançar a imparcialidade de nenhum desses relatos, apresento as indicações para que o leitor forme sua própria opinião. As fotos são terríveis, e, se forem autênticas, justificam as últimas palavras de Kurtz. Aliás, no filme, o Kurtz americano relata, numa das muitas falas que não estão no livro, a cena da amputação coletiva e do horror da pilha de bracinhos empilhados.